Admirável Coutinho

por soaressilva

Admirável Coutinho tinha esse nome, fazer o quê? Porém de tempos em tempos alguém numa redação ou numa estação de TV tinha a idéia:

-Tem um cara em Embu das Artes chamado Admirável Não-Sei-Quê, vamos perguntar pra ele o que ele tem de admirável?
-Putz, Embu das Artes?

Mas iam.

-Admirável, você é admirável?
-Não, né.
-Por que esse nome então, Admirável?
-Meus pais que me deram ué.

Se apenas ele desse umas respostas melhores. Mesmo assim sempre iam apertar a campaínha da casa dele.

-Como você se sente se chamando Admirável, Admirável?
-É o meu nome né. Podia me chamar Cláudio, ou sei lá… (longa pausa, era chato o homem) Pedro… Mariano… mas os meus pais me chamaram Admirável né.
-Mas você não é nem um pouquinho Admirável?
-Não sei acho que não né.
-Por que os seus pais te chamaram de Admirável, Admirável?
-Não sei eles morreram quando eu tinha quatro anos.

Podia mudar de nome, queria mudar de nome, para Pedro, Indelécio, tanto fazia, o que queria era parar aquelas visitas de jornais e estações de tevê, as perguntas bocós.

-Você é Admiráel, Admirável?

Era mais seco agora:

-Não.
-Ah eu discordo, Admirável, porque você é um brasileiro batalhador, simples, pai de família. Você é sim Admirável, Admirável. Concordam, família?

A família concordava, em tempos e alturas diferentes, num efeito desajeitado.

-Como você se sente ouvindo a sua família dizer isso, Admirável?

Admirável Coutinho sentia que todos esperavam que ele falasse que ficava emocionado, mas ele entendia que a família tinha sido meio que forçada a falar isso por causa da câmera, e só encolhia os ombros.

-Tá emocionado, né, Admirável?

Encolhia os ombros de novo, e depois de um tempo dizia baixinho:

-Não sei.

Sempre saíam decepcionados.

-Ele não é nem um pouco admirável esse Admirável – disse uma jornalista um dia ao voltar a entrar na van pra ir embora.
-Meio matuto.

Mas tarde da noite Admirável Coutinho ficava pensando. É, podia mudar o nome, mas não era uma solução fácil demais, uma solução de covarde? Não seria mais construtivo merecer o nome, virar admirável em alguma coisa?

Mas em quê? Ficava se revirando sem conseguir dormir, pensando em como podia ficar admirável.

-Está pensando de novo? – a mulher acordava no meio da noite.
-Estou.
-Pensa não – e ela se virava e logo voltava a dormir.

Um dia quando o filho mais velho tinha dezesseis anos a mãe contou na cozinha que o pai ficava acordado de noite, triste porque não tinha nada de admirável.

-Mas o pai é admirável.
-Fala pra ele.

Em vez de falar, uns dias depois o filho largou um papel pautado no colo do pai que via tevê na sala.

-Que é isso?
-Redação da escola, lê.

Admirável leu e viu que o filho tinha escrito vinte maneiras que o meu pai é admiravel, e Admirável foi lendo e tinha vinte maneiras mesmo, bonitinho, bons sentimentos, mas sentiu que os olhos do filho estavam fixos nele esperando alguma reação, que ele sorrisse ou chorasse, e ele tentou se forçar a chorar pra não desapontar o filho, mas de repente a redação pegou ele de jeito e ele estava chorando mesmo.

-Bobagem… Bobagem… – disse o Admirável estendendo a folha de volta.
-Bobagem nada, ué – disse o filho sorrindo.

Mas isso só piorou a sensação do Admirável: agora que tinha que se tornar admirável mesmo em alguma coisa, pra fazer jus não só ao nome mas também ao que o filho pensava dele. Que eram exageros que nem faziam sentido, ao seu ver.

“É um bom pai”. Por que ele era um bom pai, porque não batia? Porque cuidava? Era o mínimo. O nome que merecia era Mínimo, rará, pensou se revirando na cama aquela noite.

-Que foi, Admí? – perguntou a mulher.
-Nada, uma besteira. Volta a dormir.

A mulher um dia lhe tinha dito: escuta você é o único homem nessa rua inteira que está empregado faz onze anos na mesma empresa, nunca falta no trabalho, nem quando a kombi prensou você no muro você faltou. É o único homem nessa rua inteira que quando bebe só fica quieto, sorri, dá tchau e vai pra cama dormir. (Olha a diferença com os vizinhos dos dois lados.) Os nossos filhos são os únicos nessa rua inteira que já têm dinheiro economizado pra fazer faculdade, pra começar a pagar pelo menos. Como é que isso não é admirável? Como?

-Eu que pergunto, como é que isso é admirável? Fazer a própria obrigação?
-E não é?
-Eu não acho.
-Hoje em dia eu acho. Olha os outros.

Mas Admirável encolhia os ombros:

-Eles que sabem deles.

Tá bom, Admirável, parecia dizer o mundo. Esquece isso. É só um nome. E ele esqueceria até, dado tempo, se não fossem as equipes de tevê, os portais de notícia, as meninas jornalistas que falavam com ele como se ele fosse retardado.

-Não não tenho nada de admirável – ele já ia dizendo.
-Mas —
-Não tenho. Tchau.
-Mas é só uma perguntinha rápida —
-Como eu me sinto me chamando Admirável?
-É.
-Não sei, como você ia se sentir se chamando Linda? Você ia gostar? Você se acha linda?

A menina jornalista que era só ok mas acima do peso fechou a cara, era um daqueles homens do povo, não um do tipo que ela gostava.

-Tá, vamos embora, Tarcísio – e entraram na Fiorino.

Mas Admirável se sentia mal de ter sido mal-educado.

Bom, mudou o nome. Fez os trâmites lá. Se chamava agora Fernando Coutinho Guedelha.

Bem mais bonito, não? Agora dava o nome falando mais alto, preechia o nome com alegria, ou pelo menos alívio.

Quando alguém no bairro ou no trabalho ainda o chamava de Admí, corrigia:

-Fernando agora.
-Ah é.

No início estava alegre mesmo, mas de repente, principalmente tarde da noite sem conseguir dormir, começou a perceber uma sensação ruim.

Mas o que era, o que podia ser? O nome era perfeito, gostava muito: Fernando Coutinho Guedelha. O que tinha de errado? Mas alguma coisa tinha de errado.

Começou a perceber que estava ficando desleixado, que ficava mais tempo na cama de manhã, chegava agora dez ou vinte minutos atrasado no trabalho, um dia até quarenta minutos, o que não fazia antes.

De modo geral começou a ficar desleixado mesmo. Não fazia a barba com frequência, se vestia pior. Talvez os outros não notassem mas ele notava.

Gastava mais. Comprou uma tevê melhor, se pensar bem sem necessidade.

Que é isso? O que está acontecendo?

Fernando Coutinho Guedelha, o que tem de errado?

A mulher se esforçando pra chamar ele de Fê, se esquecendo às vezes.

Demorou um tempo pra perceber mas um dia, andando na rua, percebeu que enquanto se chamava Admirável ele se esforçava pra ser admirável, ou pelo menos fazer o mínimo que era preciso pra viver, mas ao desistir do nome era como se tivesse desistido de ser qualquer coisa melhor do que ele já era. E isso parecia ruim, muito ruim.

Era errado. Tinha sido mesmo um gesto de covarde. Ele tinha desistido de uma coisa que não era pra desistir.

Falou pra mulher que ia voltar com o nome original.

-Por que, (pausa mínima), Fê?
-Eu desisti de uma coisa que não era pra desistir. – Sacudia a cabeça, fazendo não, sem conseguir se expressar melhor. – Não era. Só sei que não era.

O juiz lá não queria mudar.

-Isso aqui não é palhaçada, decide primeiro e volta depois.
-Eu decidi…
-Não vai mudar depois? Porque isso aqui não é palhaçada.

Era, mas deixa quieto.

O nome voltou a ser Admirável Coutinho, e por inteiro Admirável Coutinho Guedelha.

Voltou a fazer a barba com frequência, a por uma roupa boa pra trabalhar.

É verdade que continuava pensando, tarde da noite: admirável em quê, admirável em quê? E como a resposta não vinha, continuava sofrendo.

Mas agora quando lhe perguntavam se era admirável, dizia:

-Não. Não sou não. Mas um dia, não sei. Um dia, sei lá. Um dia talvez eu seja.

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