O Vigilante Rodoviário Contra o Cerrado Infinito

por soaressilva

Era preciso tirar a Mãe Preta do cerrado.

-Precisamos tirar a Mãe Preta do cerrado – disse o Presidente Café Filho.

Mandou chamar o Vigilante Rodoviário.

-Tire a Mãe Preta do cerrado, Vigilante Rodoviário!
-Já não era sem tempo, senhor Presidente!

Todos sabiam que Getúlio Vargas havia ignorado o tormento da Mãe Preta por mera torpeza tropical atavista. Mas Café Filho com todos os seus defeitos de homenzinho pouco notável estava disposto a mudar a metafísica infausta do Brasil.

O Brasil mudaria, o Brasil ficaria bom, se a Mãe Preta fosse instalada numa casinha de vó na Mooca.

O Vigilante Rodoviário preparou uma baita merenda basicamente consistindo de sanduiche de pasta de amendoim e um tupperware rosa com pedaços gelados de abacaxi para si e para o cachorro Lobo e os dois subiram na gloriosa Harley-Davidson de 1952.

Pegaram a estrada, o vento brincando com os grossos filetes de baba do bravo pastor alemão Lobo. Era um dia bonito.

Mas quando a estrada acabou e o Vigilante Rodoviário subiu com sua motoca homérica nas trilhas fechadas do cerrado, tudo escureceu, inclusive a alma do herói.

“O cerrado é infinito”, pensou o Vigilante Rodoviário com angústia.

De fato o cerrado era tão infinito que de repente não havia nem estrada pela qual ele tinha chegado ali – tudo era cerrado e sempre havia sido cerrado.

“Como vou encontrar a Mãe Preta?”, pensava o Vigilante Rodoviário avançando cerrado adentro ou, dava rigorosamente na mesma, recuando cerrado afora. “E se a encontrar, como vou tirá-la daqui?”

Nenhuma casa no cerrado, nenhum sinal de construção humana, nenhum vendedor de banana, nada exceto um cerrado que parecia ter sempre coberto a superfície da Terra toda, obliterando Império Romano, a infância gostosa do Vigilante no Cambuci, as estradas que ele amava, tudo.

Mas o herói prosseguia com determinação heróica mesmo se com altas doses de angst e começando a virar niilista ali porque o cerrado é niilista, ele bota isso no coração dos homens.

O cerrado começou a afetar o Lobo também. Ele aninhado no seu lugar lá do lado da moto começou a tremer, ganir baixinho, depois até uivar, triste de tudo.

-Que foi, Lobo, meu velho amigo? – disse o Vigilante Rodoviário parando a moto e passando a mão na cabeça do Lobo.- Você não teve medo nem com a gangue dos camelôs milionários. Está com medo agora? É só mato. Mato de todos os lados. Mato para sempre.

Lobo gania, chorava, uivava, tremia. A alma do Vigilante Rodoviário fazia a mesma coisa.

Ele olhou para o caminho que tinha pela frente, considerando a ordem que tinha recebido, mas considerando também seu amor pelo Lobo que nem o niilismo de um cerrado infinito podia destruir.

-Pode deixar, meu amigo – disse o Vigilante Rodoviário – Vamos pra casa. Se ainda houver uma casa…

Voltaram por onde tinham vindo. E, para a surpresa do Vigilante, o cerrado infinito acabou, ele estava de novo na estrada, Lobo estava feliz, ele estava feliz.

Naquela noite na sua casinha modesta mas confortável no bairro da Aclimação o herói tirou as botas, tomou um banho de banheira com Aqua Velva, alimentou o Lobo, se alimentou, os dois viram um filme dos Três Patetas, o Vigilante bebendo devagar uma única lata de cerveja e tentando não pensar que tudo isso era ilusão, o conforto da casa, do filme, a noite quente da Aclimação, e que na verdade ainda estavam no cerrado. Que sempre tinham estado no cerrado. Que nunca sairiam do cerrado.

***

No dia seguinte de manhã bem cedo ele e o Lobo pegaram a estrada de novo, dessa vez no Simca Chambord; para o Sul, para Buenos Aires, para consultar o seu velho amigo Jorge Luis Borges que sempre o orientava nos dilemas mais complicados da sua existência.

Nessa época Borges morava na calle Maipú. Era o fim da tarde; voltava de um chá na casa de um escritor medíocre e vaidoso e enfiava com mão insegura a chave na fechadura da porta quando, senão quando, sentiu um cachorro roçando a sua perna. Pela primeira vez naquele dia, sorriu de verdade, sorriu honesto, se agachou, acarinhou o bicho, sentiu o bafo afável do animal na sua cara ultracivilizada, e falou:

-É você, Lobo? Onde está o Vigilante?
-Aqui, meu amigo – disse o Vigilante botando uma pesada mão no ombro do autor de Ficciones.

Subiram. O Vigilante notou consternado que o seu amigo estava ficando cego, que se apoiava no corrimão da escada a cada passo, que deslizava a mão pela parede até encontrar a sua porta, mas não disse nada. (Caluda.) No apartamento foram recebidos com efusão e licores pela mãe de Borges que adorava o Vigilante Rodoviário. O Vigilante comeu o pudim da mãe de Borges, elogiou um bordado, chegou até a recitar Verlaine e Browning, ele que gostava de esconder a cultura que tinha e sem sacrifício nenhum bancava o homem simples para os homens simples.

O Vigilante teve o prazer de ouvir Borges citando Antero de Quental:

-Na mããão de Deus, na sua mããão direita…

Quando ela saiu e ele e o Lobo ficaram a sós com o escritor, o Vigilante contou o que tinha passado.

-O cerrado brasileiro me apavora – disse Borges. – Sonho às vezes com o cerrado brasileiro, que nunca vi, mas cuja descrição li no livro primeiro de Euclides da Cunha. Sinto que o cerrado apaga toda a história; apaga a Grécia e Bizâncio; apaga a feliz obra de Leibniz e a infeliz obra de Schopenhauer, apaga os campos ao sul de Gualegay, apaga os céus que vi pela janela da minha escola em Genebra aos dezessete anos, e as as manhãs e as noites da campanha de Gallipoli; apaga a batalha de Maldon e a íntima discórdia de suas duas linhagens; apaga todas as notações de todas as partidas de xadrez jogadas desde o século setimo; apaga a obra de Milton e as fitas de James Cagney; apaga até mesmo a penumbra crescente desta sala, e a presença cálida de dois velhos amigos como vocês.
-É como me senti – disse o Vigilante.- É como me sinto, ainda. É como se não tivesse saído do cerrado…
-Escute – disse Borges se inclinando de repente para a frente na poltrona e se apoiando na bela bengala de nogueira. – O cerrado é um labirinto. Mas falta a esse labirinto um minotauro. Ninguém jamais escapou de um labirinto que não tem um minotauro.

Tão rápido como tinha se posto pra frente Borges pareceu muito cansado e voltou a se inclinar para trás na poltrona, suspirando, subitamente murcho e amarfanhado no seu terno cinza claro. Despenteado, perdido, triste. E disse:

-Esse é o único conselho que posso lhe dar.

Escurecia. O Vigilante Rodoviário pousou a sua taça de licor de whisky numa mesinha lateral. Sentiu que o cerrado invadia a sala pela grande janela que dava para a calle Maipú; que ao sair dali não encontraria cafés abertos, libélulas em volta das luzes das livrarias, mulheres maquiadas, grupos de estudantes soltando berros; mas só uma tristeza inumana e horrível.

***

A tarefa de fabricar um minotauro brasileiro não foi bolinho.

Café Filho terminou de ler o relatório do Vigilante Rodoviário e apertou um botão vermelho num telefone vermelho.

-Dona Laurinda Stevens chame o Dr Oswaldo Cruz, que é um baita de um crânio.
-Mas ele morreu, Café.
-É? Quando?
-Faz muito tempo, Café. Pôxa.
-Bom. Chama o Rondon então.

O Marechal Rondon chegou lá com folhas de árvores e besouros nos cabelos.

-Que foi?
-Precisamos construir um minotauro brasileiro.

O Marechal Rondon olhou bestamente para o Café Filho.

-E eu com isso?
-Ué você não sabe os segredos dos índios tudo lá?

O Marechal suspirou.

-Sei alguns. Mas eles não fazem minotauros. Eles não sabem nada de minotauros.
-Não?
-Não. Eles fazem curupiras, raptando uns molequinhos na Mesbla, no Mappin e nos supermercados Valdirama, e martelando os pés…
-Não quero ouvir – disse o Café Filho, que era sensível.

Na cara do Marechal Rondon o Café Filho apertou de novo o botão vermelho no telefone vermelho.

-Dona Laurinda Stevens me chama aí um cientista – ele disse, e olhando significativmente para o Marechal: – Alguém que SAIBA de alguma coisa.

O Marechal Rondon cuspiu tabaco no tapete com motivos tropicais de tucanos e umas plantas que nem existem, encolheu os ombros e voltou despeitado pra Amazônia.

Dona Laurinda Stevens não chamou propriamente um cientista mas chamou o jurista e filósofo Pontes de Miranda, que era também, no dizer presidencial, um baita dum crânio, e que entendia dessas coisas de ciência, contradizendo e humilhando Einstein sempre que podia só por hobby e livre exercício da sua superioridade intelectual.

-Diga lá.
-Precisamos construir um minotauro brasileiro.

Pontes de Miranda arregalou os olhos, cheio de idéias.

-Mas é pra já.

Saiu sem nem perguntar pra quê, não queria saber, era um projeto, ele tinha construído um porão na sua casa em Perdizes justamente para projetos científicos, era um porão bacana, queria estrear o porão. (Deixa ele.)

Na mesma tarde Carlos Lacerda com seus óculos pesadões foi visitar o Pontes de Miranda no seu porão vagamente macabro cheio de bicos de bunsen e jarras com fetos deformados de girafas e orangotangos e coisas assim. Uma grande capivara com duas cabeças estava empalhada num pedestal bacanudo de madeira.

Lacerda tirou uns livros de uma cadeira de vime e sentou pesado, viril.

-Então vai fazer um minotauro?
-Vou.
-Não te ocorreu perguntar pra quê, sua besta?
-Não me interessa.
-Pois te digo: é pra tirar a Mãe Preta do cerrado.
-Ótimo!
-Mas se é assim, se é preciso um minotauro, por que não importar um minotauro da Grécia? O Chiquinho Scarpa tem um e passeia de coleira com ele todo dia pela Alameda Santos, chocando a sociedade paulistana.
-Mas aí é que está! Não quero chocar a sociedade. Quero dignificá-la. O Brasil precisa de um minotauro nacional. – E logo Pontes de Miranda deixou escapar o motivo verdadeiro do seu interesse: – É um desafio, de qualquer maneira.

Carlos Lacerda suspirou, limpou os óculos com um lenço de cambraia.

-Então tá. Como posso te ajudar?
-Voluntários, meu caro. Preciso de voluntários.
-Vou arranjar no exército.
-Bem parrudos.
-Tá bom.

Eis a lista dos heróicos voluntários do exército e da marinha que faleceram durante as experiências no porão de Pontes de Miranda:

Sub-tenente Adilson Queiroz; Taifeiro de 1a Classe Heitor Damasceno Britto; Segundo-Sargento Fabio Tulipa Neto; Cabo (não-engajado) Wenceslau Broca dos Santos; Corneteiro de 2a Classe Olímpio Nascimento dos Anjos; Soldado-Clarim Temístocles Aderbal dos Santos Queiroz; Soldado Fuzileiro Naval Roberto Aparecido; e o Grumete Antônio Feliciano dos Santos (o “Biba”).

Porém Pontes de Miranda, que era craníssimo, sabia o que era DNA por ter sido descoberto dois anos antes, tudo bem, mas ele tinha na verdade descoberto o DNA muito antes disso, quando era garoto; e deduziu que se pegasse o DNA no sangue de um boi mangalarga, e que se injetasse sem dó esse DNA na cabeça de um sudestino parrudo, poderia obter quem sabe um minotauro autenticamente nacional.

Ele finalmente conseguiu isso certa manhã na figura do voluntário carioca o heróico cabo Edmilson Feliciano dos Santos, um entusiasta do bodybuiding, do jiujitsu e do surfe.

-Estou ao dispor do Brasil – disse o cabo com ampla sinceridade.

Veio a injeção direto no olho. O cabo Edmilson começou a urrar.

-Valha-me Deus! Acuda!

Segurava a cabeça, se sacudia.

-Shhhh, shhhh – dizia o Pontes – Vai passar.

Coisa estranha, a cabeça do cabo foi ficando no formato da cabeça dum boi, os ossos quebrando e se amoldando; mas sem pelos, retendo a tez e todos os traços humanos. Era um pouco penoso de ver, suas sobrancelhas, seus olhos comoventes parados numa expressão perplexa. Mas era inegável que era uma cabeça de boi num corpo formidável e fortinho; fortão, até; monstruoso.

Começou a se debater, a quebrar móveis; uma expressão furiosa surgiu no seu rosto agora subitamente mitológico. Foi contido por seis seguranças que estavam lá pra isso mesmo, e um tranquilizante cavalar no antebraço veiúdo e moreno; e muito bem amarrado numa maca.

Foi o primeiro e último minotauro carioca. Há uma estátua do minotauro carioca na Praça Quinze. Um colosso. Uma estátua que inspira vitalidade ao mais pachorrento dos cariocas arrasta-chinelo.

***

Um piloto chamado Álvaro Linhares foi encarregado de largar o minotauro adormecido no meio do cerrado. Porém assim que sobrevoou no seu helicóptero os primeiros metros de cerrado, viu que qualquer ponto do cerrado era o meio do cerrado, e que a Terra inteira estava coberta de cerrado.

“Entrei em pânico. Decidi largar o minotauro logo ali e sair de lá o mais rápido possível. De olhar para o cerrado cobrindo o horizonte em todas as direções, senti que queria vomitar. É difícil explicar, mas era terrível. Parecia que o cerrado estava olhando pra mim. Senti que meu apartamento recém-comprado em Copacabana não existia mais, e que a minha mulher não existia mais. A minha filha Maísa de dois meses não existia mais. Minha mãe, meu pai, não existiam mais. Estava louco pra telefonar pra minha mulher e ouvir a sua voz dizendo que tudo estava bem. Meus dedos tremiam e a minha visão estava embaçada de lágrimas. Desci um pouco, até cerca de vinte metros do solo. Puxei a alavanca e vi o corpo drogado do minotauro caindo com um baque na terra lá em baixo. E “chispei” dali.”

(Do livro “Operação Minotauro”, 1966, Álvaro Linhares e José Louzeiro, editora Cogitec, 2a edição.)

O Vigilante Rodoviário deixou o Lobo na casa do seu amigo o inspetor Leite, um detetive muito esperto da época.

-Caso eu não volte…
-Vai voltar.
-Mas caso eu não volte, ele gosta de cenoura. Louco por cenoura. Uma inteira por dia.
-Está bem.
-Crua.
-Está bem.
-Frango ele adora. Maçã. Às vezes dou um hamburguer.
-Vou providenciar.
-Ele gosta de dormir perto da gente, também. Não se dá bem dormindo no quintal. Quer dizer, ele não reclama, se for necessário. Eu é que gosto de dormir com ele no quarto. Ele não reclama mesmo. É um anjo.
-Entendi.

O Vigilante Rodoviário se ajoelhou no gramado extenso da casa do inspetor Leite no Pacaembu, onde havia aliás uma biblioteca imensa sobre criminologia que o Vigilante às vezes visitava e na qual passava horas. Fez um carinho na orelha do Lobo.

-Vou tentar voltar, ouviu? Vou fazer de tudo.
-Vai voltar, vai voltar – dizia o inspetor Leite.

Houve uma festa no quilômetro 75 da Raposo Tavares para a despedida do Vigilante Rodoviário. Uma bandinha militar tocava umas músicas lá. Um assessor do Café Filho apertou a sua mão. Deu um diploma que depois, discretamente, o Vigilante largou no lixo.

Virgínia Lane, uma beldade corista e cocota, deu um beijo estalado na sua bochecha enquanto os fotógrafos sorriam e soltavam flashes fumacentos.

-Boa sorte, herói do Brasil! – disse Virginia Lane com lágrimas nos olhos.
-Obrigado, Virgínia!

As mulheres tinham um negócio pelo Vigilante.

Os jornalistas perguntaram que armas estava levando pra lutar com o minotauro. O Vigilante mostrou as mãos enluvadas: só uso as mãos. Às vezes os joelhos. Às vezes, precisando, botinadas.

Um jornalista escreveu: HERÓI OU LOUCO?

Ninguém sabia. Era de se debater.

Bom, ele acenou, acenaram de volta, soldados bateram continência, e a banda militar tocou uma música do Cauby Peixoto por algum motivo abstruso. Cinco marinheiros mamelucos atiraram pro ar. Virginia Lane chorou num lenço fornecido momentos antes pelo Vigilante. Chorou de verdade. Estava, todos disseram, encantadora, vulnerável, sexy.

De repente sem virar pra trás o Vigilante saltou na Harley-Davidson de 52 e partiu pela estrada. Que estava fechada pra outros veículos. Nem era necessário mas estava fechada por ordem do governador gordito que queria aparecer no jornal.

O Vigilante indo pela estrada vazia na velocidade máxima que a lei permitia, tentando aproveitar seus últimos momentos (talvez na vida) de velocidade, vento e felicidade. Mas a expressão no seu rosto era já fechada como o cerrado que o esperava.

***

Subia um morrinho de cerrado, depois outro morrinho, depois uma planície infinita que apesar de infinita terminava num morrinho, e depois em outro morrinho, e depois em outra planície infinita.

Tinha a noção de que estava ficando louco: que dali a pouco estaria tendo pensamentos de cerrado. Talvez já estivesse tendo pensamentos de cerrado. (Estava.)

O que o salvou foram os urros de uma criatura em um morrinho lá perto, quando acabava a planura que não acabava. Dava pra ver a criatura dando murros a esmo nas poucas árvores mirradas a meio caminho da descida do morro. Elas balançavam, galhos voavam.

A criatura estava dando uma surra no cerrado, e ganhou a simpatia do Vigilante Rodoviário.

-Eu e você, minotauro – disse, e avançou com alegria na direção do morrinho.

Mas opa. É possível travar uma luta de vida e morte com alegria? É, e foi, porque a excitação da ação física obliterou o cerrado, obliterou o infinito e o nada que o esmagava. Um segundo que passe de vez, mas passe bem passado, vence a eternidade, por um segundo que seja.

Assim que viu o Vigilante chegando na sua motoca o minotauro baixou a cabeça e veio correndo na direção dos dois; baaaaaaah, berrou, e bateu a testa com tudo na frente da moto: o Vigilante Rodoviário rodopiou no ar e caiu num arbustinho seco que cortou a sua nuca.

O minotauro levantou a moto e jogou no arbusto; o Vigilante levou uma guidonada na cara e ficou prensado ali contra o arbusto cortante. Ainda estava alegre com toda essa ação física, embora atordoado com a coisa em si que estava acontecendo. O minotauro veio correndo e saltou por sobre a moto qual um astro de telecatch, caindo pesado, urrando, bufando, e um escapamento da sua moto querida rompeu o músculo da coxa direita do Vigilante e fez o seu joelho fazer tlec.

Fazer a sua Harley-Davidson, companheira de tantas aventuras, espancá-lo! O Vigilante com o rosto retorcido de dor, que fez? Retorceu o rosto um pouco mais para rir: seria divertido contar isso depois para a Virgínia Lane, ou para os seus netos, os pequenos Lanes.

Felizmente o minotauro era burro e ficou dando socos na moto. Talvez achasse que lutava contra dois inimigos. O Vigilante foi cobreando pra fora do arbusto, processo no qual juntou, nas costas, cicatrizes novas à cicatriz que tinha feito na explosão do celeiro de aguardente falsificada (no caso da Gangue da Aguardente Falsificada).

Com a camisa rasgada nas costas, como um herói de capa de revista de aventuras masculinas dos anos 50, que era exatamente a época em que estava, e não mais na eternidade, o Vigilante Rodoviário se pôs de pé e deu quatro botinadas violentas no oblíquo desenvolvido e suado do homem-boi, que rolou para o chão berrando de agonia porque uma das botinadas lhe havia esmagado o baço.

Em um ponto o minotauro arrancou uma árvore e a esgrimiu contra o Vigilante; em outro ponto o vigilante tirou o capacete e com ele esmagou um pouco o crânio do minotauro. Houve no jargão do boxe trocação franca, costelas sendo quebradas e dentes sendo cuspidos na secura. Houve as tentativas do minotauro, que guardava no fundo da cachola uma memória de jiujiteiro, de levar o Vigilante Rodoviário para o chão; mas o Vigilante, que brigava nas ruas do Cambuci desde os oito anos (sempre por causas justíssimas), sabia bem afastar as pernas e manter a base.

Forte por forte, o minotauro era mais forte; mas o Vigilante tinha a astúcia de pelo menos quatro Ulisses e um sétimo de Ulisses; e cansava o minotauro, o deixava dar socos loucos no ar, o irritava jogando barro nos seus olhos tão humanos, tão de no fundo um coitado; dançava em torno dele embora coxo, parecia ágil e descansado embora estivesse começando a ver preto em um olho. No fim o minotauro, exausto de tudo, impulsionado por um uppercut na queixada descomunal, caiu com um urro perplexo numa brenha.

O Vigilante chegou até a beira do pequeno abismo (são diminutas as quedas no cerrado porém as rochas cortam a carne como quaisquer rochas) e viu que o minotauro ia morrer. Desceu, tentou consolá-lo:

-Qual o seu nome?
-Não lembro… – disse o minotauro com voz de boi.
-Você me ajudou a vencer o cerrado. Obrigado, seja você quem for.

O minotauro olhou pra ele sem entender nada. Ergueu o braço para dar um último safanão, fez só um gesto ineficiente de matar mosca, mugiu e morreu.

O Vigilante tirou o capacete e fechou os olhos do bicho. Fez uma oração.

Olhou em volta. O próprio cerrado era agora finito no tempo e no espaço; e como todas as coisas que são só o que são, era agora uma lembrança simpática no coração dos homens. O cerrado havia sido vencido, e o cerrado estava feliz por isso.

Imediatamente a Mãe Preta saiu de detrás de um arbusto. Levava os olhos escancarados porque nunca tinha visto outro ser humano.

-Moço, leva eu?

O Vigilante pôs a Harley-Davidson de pé, viu que estava só um pouco amassada mas nada demais, fez um rapapé e disse:

-É um prazer, Dona Mãe Preta. Deixe ajudar a senhora.

E foram indo, vento nos cabelos da Mãe Preta; e pimba, saíram os dois do cerrado.

A Mãe Preta depois de umas entrevistas para a revista Manchete foi instalada de fato numa casa de vó da Mooca, pequena, mas charmosa. Café Filho mandou lhe dar uma pensão vitalícia que a bem dizer não era enooorme, mas bastava para os seus gostos modestos.

A Mãe Preta era feliz vendo novela, lendo Allan Kardec. Adotou um gato da vizinhança. Regava suas plantinhas. Cultivou manjericão. Fez capas de bujão de gás para vender pra fora. Fez amizade com uma tal dona Salete, viúva de um dentista diabético e igualmente espírita e noveleira, que vivia no quarteirão de cima juntamente com a filha loiroodontíssima.

***

Naquele mesmo dia da saída da Mãe Preta do cerrado o Brasil girou nos eixos; foi desfundado e refundado em um segundo, um segundo e meio. O Brasil ficou bom. Tudo que era ruim ficou bom.

Todos os crimes foram descometidos, todas as maldades que foram ditas saíram do cérebro dos magoados que desmagoaram, e entraram de novo na boca dos ex-maldosos, que as absorveram como vitaminas e dançaram freneticamente ao ritmo do rockabilly; todos os amargos adoçicaram, todos os ranzinzas desranzizaram, todos os doentes nos hospitais saltaram da cama gritando por algum motivo um berro de caçada à raposa, todos os mortos levantaram do cemitério saudáveis como lutadores de telecatch, e foram pra casa e disseram oi pai, oi mãe, oi filho, oi querido, e pelo menos em um caso oi Berta La Douce, vim te fulminar com um beijo esta noite.

Tudo que aconteceu de triste em cinco séculos, e talvez mais, desaconteceu da manhã para a noite; tudo estava certo; tudo sempre esteve certo, o que há é que não se percebia, mas agora se percebia, e como se percebia, como se percebia, com espanto contínuo pelas ruas.

***

O próprio Lobo, que ultimamente já vinha apresentando alguns sinais de senilidade, naquele anoitecer parecia que tinha dois anos de novo e brincava pelo quintal com as bolinhas de plástico coloridas havia muito abandonadas embaixo dos móveis da casa.

O Vigilante o observava da soleira da cozinha, com um sorriso besta.

-Isso, pega a bolinha, Lobo! Pega a bolinha! Rarará!

E chutava a bolinha pra longe no longe que não era tão longe assim no quintal exíguo mas bastava pra alegria dos dois.

Sentia um vigor nas pernas como se precisasse saltar; uma espécie de corrente de vril lhe retesando as coxas; a coxa rompida estava mais que curada, estava sobrecurada; e tudo que queria era pular na moto naquele mesmo momento e percorrer alguma estrada, todas as estradas do país, com o Lobo ao seu lado, e conhecer cidades, impérios, viver aventuras, as aventuras que pode haver num país feliz, uma ameacinha de problema e logo uma solução espetacular e talvez engraçada pra gente rir em volta da fogueira anos depois; comer omeletes e milkshakes em paradas, hamburguers com muito ketchup e mostarda, batata frita, conversar com taxistas e velhas e crianças em praças do interior, tomar sorvete de milho todos os dias, ter latas e latas de coca cola gelada no compartimento da moto; e logo em seguida a estrada de novo, para sempre, para sempre jovens eles os dois, só voltando de vez em quando para a sua casa na Aclimação para ler, longe dos olhos de todos, com o Lobo dormindo no tapete arraiolo aos seus pés e um copo de leite frio suando ao seu lado na mesinha, Ariosto, Tasso, Horácio, Homero, Leopoldo Lugones, seus preferidos, por uma eternidade noturna entrecortada de quando em quando por cigarros de palha no quintal e uma ocasional bisnaga de pão com manteiga na cozinha, por toda a doce suavíssima noite equanto o sol não nascesse.

E quando o sol nascia muitas vezes tomava o café da manhã (iogurte, suco de laranja, croissants à vontade) debaixo da parreira no quintalzinho, era agradável ali. Lia o jornal: dava risada, só notícias boas, Dom Pedro II restituído ao trono, Café Filho e Pontes de Miranda seus sábios conselheiros para sempre, José Bonifácio primeiro-ministro para sempre, Joaquim Nabuco redivivo escrevendo artigos e até romances policiais. Pousava o jornal, olhava o céu azul meio frio, e pensava em que estrada queria estar em trinta ou quarenta minutos. Fumava um último cigarro de palha, muito reflexivo (não fumava na estrada, a estrada era pura), chamava o Lobo e partia de casa na gloriosa e rútila Harley-Davidson da polícia rodoviária.

Às vezes também, considerando, fazendo curva numa estrada (logo estava na estrada), sentia desprezo – desprezo não, pena – é, pena – pena sim de Aquiles, de Orlando, de Rinaldo, de Lancelote, do Rei Artur, até dos conquistadores mongóis, dos navegadores portugueses, de Cortês, do Zorro no seu cavalo, do Tex, do Dartagnan coitado – por nunca terem andado de moto numa estrada bem asfaltada, numa velocidade alta porém dentro da lei estadual. Como sói. Como ele e o Lobo queriam.

Era um prazer inesgotável. Era o maior dos prazeres. As estradas em primeiro lugar; em segundo, só viver.

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