O Despertar do Kundalini

por soaressilva


Escrevo desde os sete anos e tal, mas nunca fiz questão de contar vantagem disso porque o que eu escrevia era, well, utter trash. Eu não fui propriamente precoce. Na verdade quando penso nas histórias que escrevia é quase como se eu fosse retardado – e só não fico mais deprimido porque penso nas histórias que os meus amigos escreviam e vejo que, por comparação, eu era o Tchecov da Escolinha Mágico de Oz.

Havia uma história minha, por exemplo, em que um menino saía de casa para visitar a avó, ficava vinte anos procurando por ela e depois descobria que ela estava na sala de visita conversando com a mãe dele o tempo todo. E uma outra em que a mãe descobria que o filho havia mentido porque ele disse “vou fazer estrume” (querendo dizer que ia fazer cocô), e (assim raciocinava ela, e eu também) “estrume é coisa de bicho, logo ele mentiu”. E uma outra em que um detetive brasileiro vivendo em Londres tentava encontrar um assassino que matava as vítimas em busca de algo chamado “suco cerebral”. O assassino queria retirar o “suco cerebral” das vítimas e injetar na cabeça da mulher dele, que era burra ou maluca ou algo assim (já não lembro qual dos dois).

O estilo era empolado, do tipo que impressionava professoras de português e os meus amigos mais retardadinhos; estava tirando os cadernos de cima do armário hoje de tarde e encontrei uma história com a frase “não tivesse ele feito a peregrinação que lhe fora recomendada…” no meio duma história de pirata.

E encontrei também uma história em quadrinhos que eu fiz quando tinha nove anos, sobre um superherói chamado O Estrela (geralmente vinha um ponto de exclamação depois do nome dele, que era escrito num balão dramaticamente pontudo como se o balão tivesse explodido de tão excitado por conter o nome do herói).


Todo o problema do Estrela, além do nome que era extremamente lame (ou, como todo mundo dizia na época, “baiano”, “baiola” e, se não me engano, “requenguela”) era a origem dele, que eu contei nesta página:

Ele está andando de moto quando é cortado por um fusca e cai num desses negócios que ficam na beira da estrada, que eu fui perguntar pros meus pais como chamava (“olho de gato”). E o olho de gato, bem, “ativa o kundalini dele” – o que quer que isso seja.


Bom, eu não sabia exatamente o que era kundalini mas tinham me dito que ele ficava na “base da espinha”, e caso você não tenha visto direito como eu desenhei a cena aqui está uma ampliação:

Note a cara de dor. “Kundalini”. Ah, ok.

Bom, eu não tenho certeza se o Estrela é o único superherói que ganhou seus superpoderes ao ser empalado num acidente de moto porque faz tempo que não leio revistas de superheróis e, do jeito que as coisas vão, a esta altura deve haver um monte. Mas na verdade eu é que desenhei mal. Quando mostrei a história pro me irmão ele riu muito, e eu tive que repetir indignado que “mas não é na bunda. É na base da coluna”.

Em outra história fiz o Estrela se lembrar do episódio da sua origem e me esforcei pra desenhar a cena direito, antes que um boato grotesco estragasse a carreira dele:

(“E me senti bem estranho.” I’d say you did.)

Mas vamos voltar à origem do Estrela. Ele fica um quadrinho inteiro suando com cara de muita dor enquanto eu repito a palavra “Kundalini” várias vezes num clima psicodélico. Depois ele levanta do olho de gato e descobre que ficou fortudo, da seguinte maneira: ele vê o fusca capotado e diz que vai tentar desvirar o carro, o motorista acidentado diz “Mas é impossível!!!!” e o Estrela, sempre otimista, responde que “não custa tentar”. Daí ele vira o fusca com facilidade, e fica tão surpreso que traços saem da sua cabeça em todas as direções enquanto ele olha para as próprias mãos com a boca aberta.


Em seguida ele testa a força dele com rochas:

(Ao ver isso eu não sei como o outro sujeito não tentou bater com o kundalini no olho de gato também. É o que todo mundo faria. Mas provavelmente ficou com vergonha.)

Do nada, aparece um monstro que ataca o Estrela. Eu gosto da página seguinte, embora ache que ela tem um problema qualquer de perspectiva – ou o monstro está andando pra trás, ou eu não sei o que está acontecendo:

Na página seguinte aparece o Mestre Misterioso responsável pelo despertar do Kundalini do Estrela – mas o que eu gosto mesmo nessa página é da imagem dramática do monstro morto no chão, com a sombra do Estrela do lado:

Hein? Hein? Vou ampliar a imagem para que vocês vejam o drama:

Com o detalhe do pezinho do monstro saindo pra fora do quadrinho.

A história nunca continuava. Ela termina com um “Continua na página 33!”. Depois eu desenhei uma propaganda falsa de revista (um superherói chamado “Quasar”), palavras cruzadas com dicas do tipo “A?é ?u, Bru?us” (você tinha que escrever “T”) etc.

E havia uma segunda história em que o Estrela aparece lutando contra Hitler e seus soldados (na verdade eu preferia a palavra “asseclas”). Por falar em dramaticidade, repare na morte de um amigo do Estrela nas mãos de um assecla encapuzado:

E o dramático chiaroscuro do quadrinho do canto inferior esquerdo:

O criminoso negro com a faca está dizendo “Tá frito, xará!” – o que prova que eu já dominava a linguagem das ruas quando tinha 9 anos.


Mais um detalhe de grande dramaticidade: o Estrela confrontando o Mestre Misterioso.

Não particularmente bem-desenhado, ok, mas a fala tem a naturalidade de mais ou menos metade dos diálogos de “Batman Begins” – e vocês levam aquilo a sério. E note o suor de tensão que aparentemente brota de um momento para o outro.


Ok, só mais uma imagem e devolvo o caderno pra prateleira de cima. Nessa cena, um membro da organização criminosa T (com um T bem grande nas costas e um chapéu de palha, pra ficar com um ar bem malvado) vai cobrar a dívida de um velhinho:

Não sei se vocês conseguem ver todos os detalhes. É importante. Um delegado de polícia careca (pra mim todo delegado de polícia era careca) está confessando que faz parte da Organização T. “Atuamos no mundo inteiro fazendo “proteção forçada” (entre aspas) e, no fim do mês, cobramos taxas elevadas. Como vê, usamos meios eficazes para cobrar…”


(Eu não sei porque ele diz “como vê”, já que o que se segue é uma ilustração dos métodos da Organização T que o Estrela não tem como enxergar, sendo um flashback or something, mas adiante.)


“…tais como estes:”


Quadrinho 1
Bandido: Pague, velhote!
Velhinho: Aaaahh! Netinha! Fuja!
Netinha: Vovô!
Quadrinho 2
Velhinho: Aaaahhh!
Bandido: Não quer pagar? Tome! &%”#%#!
Netinha: Vovô!
Quadrinho 3
Bandido: CALA BÔCA MENINA!
Netinha: Aaaii!


Repare no uso do silêncio na última imagem. O ângulo. A bonequinha sorrindo. É chato ser eu mesmo a afirmar, mas nunca, nunca, desde “Roma, città aperta”, um artista mostrou com tanto faux pathos o sofrimento duma criancinha.