Um Zepelim para Belford Roxo

por soaressilva

(Um texto antigo sobre a afirmação de que não se pode criticar um romance pelo assunto, mas só pela maneira com que é desenvolvido.)

Essencialmente o que quero quando leio um romance é a sensação de estar vivo num lugar em que eu queira estar vivo. A sensação de estar de pé num corpo que não é meu, ou a de não estar em corpo nenhum, uma consciência descarnada passeando por aí, observando outros corpos e outras vidas e sentindo os cheiros, as brisas, as mudanças de pressão.

Um romance é ao mesmo tempo o meio de transporte e o destino, o meio de transporte sendo o estilo e a habilidade geral do escritor, o destino sendo onde quer que você se imagine enquanto lê o livro. Alguns romances são um meio de transporte vagabundo, ou não especialmente digno de nota, mas me levam exatamente para onde eu quero ir no momento, digamos a Promenade des Anglaises ou Key West ou Oxfordshire ou as ilhas Grenada. Outros romances são meios de transporte excepcionais mas me levam para lugares onde não quero ir: um Flying Scotsman para a caatinga, um Mirabella V para o Largo 13, um Bugatti Veyron para o Capão Redondo, ou um Expresso do Oriente direto para Osasco.

Seria de se esperar que todos concordassem que o ideal é um romance que seja um meio de transporte excelente para um destino excelente – mas nãããão. Se um romance é um avião, a maior parte dos leitores sérios de ficção também séria parece exclusivamente interessada na beleza do avião, na sua estabilidade e engenharia, na história da aviação e tal, e fica um pouco impaciente quando alguém reclama da feiúra da paisagem vista pela janela. De fato, é de mau tom reclamar do destino; isso é o escritor que tem que decidir; cale a boca e admire o design dessa asa.

E compreendo também que não se pode criticar uma linha aérea pelo ponto de destino – que não se pode chegar no balcão da linha aérea e dizer, “O quê, um avião pra Uganda? Que bosta!”, por mais que se tenha vontade. Posso reclamar de uma linha aérea porque me serviram refrigerante sem gás, mas não porque me levam pro Inferno.

E, ok, às vezes acontece que não reclamo. Se a decoração do avião for bonita, ou nem um avião, digamos se estivermos a bordo de um LZ 127 Graf Zeppelin a caminho de Belford Roxo, talvez eu consiga só prestar atenção nos vidros Lalique e evitar olhar pela janela. Mas mesmo assim, né, não quero ir pra Belford Roxo.

Ao que, claro, me dizem sensatamente Então não vai, ué. E não vou, quase nunca. Mas não me basta não ir. Tenho que ficar no aeroporto reclamando do fato de tantos zepelins tão bonitos e tantos pilotos tão hábeis voando exclusivamente para Belford Roxo, só porque uma convenção tola estabeleceu que quanto mais feio o ponto de destino mais artística é a viagem, e que há algo de profundamente kitsch em querer ir para um lugar onde você realmente goste de ficar.

(Para o espírito de Guimarães Rosa. Onde quer que você esteja, um chute nas suas canelas.)