As Três Crianças de Leipzig
por soaressilva
I
Quando, na noite de Natal, os presentes foram finalmente desembrulhados, tanto o robô de plástico quanto o soldadinho de chumbo não conseguiram disfarçar o desapontamento ao ver as caras das crianças que os haviam recebido.
-É só isso? – disse o robô.
-Que bosta! – disse o soldadinho de chumbo.
Dos três irmãos, Cláudio, Milton e Cynara, foi Cynara que se recuperou do choque mais rápido. Ela disse:
-Quem é uma bosta? Vocês são uma bosta.
-Não, você é uma bosta – disse o soldadinho de chumbo.
-Menina com cara de bosta numa casa toda feita de bosta – disse o robô.
Cláudio e Milton estavam chorando. O soldadinho de chumbo, de tão frustrado, deu um chute no próprio tamborzinho, que saiu quicando pelo chão da sala fazendo um barulhinho metálico: chink chink chink chink chink.
-Toda essa expectativa pra nada – resmungou o soldadinho.
-Quanto maior a expectativa, maior o desapontamento – disse o robô, que era mais ou menos um sábio.
-Ai, gente. Coitados – disse Conchita, a boneca, que estava acompanhando tudo num canto.
Cynara estava pensando, com ranho escorrendo do nariz.
-Vou pedir pro papai trocar vocês, seus bostas – Cynara disse.
-Não – disse o soldadinho – Eu vou pedir pro seu pai trocar vocês.
O pai das crianças, o Professor Boombeck, estava numa poltrona da sala quebrando nozes na testa. Ele tinha uma testa muito dura e gostava de quebrar nozes, avelãs e amêndoas batendo com elas na testa. A cada noz, avelã ou amêndoa quebrada, algumas células do seu cérebro morriam e ele ficava um pouco mais burro. Mas ele era professor de filosofia e não ligava.
Cynara olhou pra ele. Claro que a idéia de que o pai ouviria o soldadinho e trocaria os próprios filhos por outras crianças era absurda. Mesmo assim, ela começou a correr pra chegar na frente do soldadinho.
Para azar dela e das crianças, no entanto, o robô pegou o soldadinho nos seus braços grossos e fortudos e o jogou com força na testa do pai das crianças. O soldado quicou na testa e caiu na vasilha de nozes, avelãs e amêndoas que estava no colo do pai.
-Pai, troca essas crianças que elas são umas bostas! – gritou o soldadinho.
-Pai, troca esses brinquedos que eles são umas bostas! – gritou a menina.
O pai coçou a testa, onde a baioneta do soldado tinha feito um cortinho, e disse:
-Humm, o soldadinho falou primeiro.
-Ah, pai – disseram as crianças, desesperadas.
-Vocês gostariam se vocês tivessem falado primeiro – disse o pai, que era muito justo – e eu fizesse o que eles querem? Não seria justo, seria? Seria?
-Não – disseram, chorando, Cláudio e Milton (que também eram muito justos).
-Ele falou que a gente é uma bosta – Cynara disse.
-Bom, bom – disse o pai rindo. – É um soldadinho brincalhão.
-E que a gente vive numa casa toda feita de bosta – Cynara continuou.
O pai ficou pensativo. Quebrou uma avelã na testa e disse:
-Aí é um pouco demais, hein?
-Mas não é? – perguntou o soldadinho. – Estou mentindo?
-Pior que é – disse o robô. E completou numa vozinha meiga, ainda que eletrônica: – Seja justo, pai. Olha quanto espelho, quanta coisa dourada. A gente não mente, pai.
O pai ficou pensando, com sanguinho escorrendo pela testa do corte da baioneta do soldado.
-Você que acha, boneca Conchita?
-Essa casa toda é um grande no-no, pai – Conchita disse. – Menos é mais.
-Menos é mais – repetiu o pai, sem entender. Depois quebrou uma noz na testa e disse: – Ok, crianças, entrem nas caixas em que os brinquedos vieram que eu troco vocês amanhã no orfanato. Sem choro nem cara feia, o justo é o justo.
As crianças choraram e espernearam, mas acabaram entrando nas caixas. Depois que elas entraram, o pai embrulhou as caixas e amarrou tudo com fitas para que as crianças não saíssem.
Em seguida o pai colocou uma etiqueta em cada caixa indicando qual filho estava dentro, e em cada etiqueta escreveu: DESTINO: ORFANATO.
As crianças mal podiam acreditar: uma hora antes estavam todas contentes comendo rabanada e chocotone e esperando a hora de abrir os presentes – e agora estavam passando a noite de Natal em três caixas escuras. Eles choraram tanto que quase morreram afogados dentro das caixinhas.
II
Quando finalmente amanheceu, e as caixas foram abertas pela diretora do orfanato, que era uma gordona do tamanho dum New Beetle, Cláudio, Milton e Cynara estavam tão enrugados de terem passado a noite mergulhados nas próprias lágrimas que pareciam três velhinhos.
-Meu Deus, quem são esses três velhinhos? – disse a diretora do orfanato. – Me disseram que aqui havia três crianças, bem fresquinhas e macias!
Ela estava especialmente desapontada porque estava preparando feijoada naquele dia para receber umas amigas, e todo mundo sabe que feijoada só fica boa com pedaços de criança boiando dentro. Velho tem carne dura.
Cynara, que era a mais esperta dos três (Cláudio e Milton eram meio retardados, coitados, porque tinham pegado o hábito do pai de ficar quebrando nozes na testa), teve uma idéia e imediatamente ficou curvadinha, cobrindo a cabeça com o papel de embrulho como se fosse um xale. E disse:
-Eu sou a Dona Maricotinha, esse é o Seu Agenor e esse é o Seu Nicanor. Somos três velhinhos muuuuito velhos.
-Velhos quanto? – perguntou a diretora do orfanato, desconfiada.
-Somos as pessoas mais velhas do mundo – Cynara disse. – Temos, sei lá, mais de dezesseis anos. Quando a gente nasceu todas as galinhas do mundo eram pintinhos. Todos os cachorros eram filhotinhos. As árvores, que na época eram só arbustos, falavam.
-Falavam o quê?
-Elas fofocavam sobre as nuvens. Passavam o dia inteiro fofocando. As nuvens ficaram completamente desmoralizadas.
A gorda coçou o queixo peludo.
-Droga – ela disse. – Velho não serve pra fazer feijoada. Todo mundo sabe que feijoada só fica boa com pedaços de criança boiando dentro.
Cynara teve a segunda idéia brilhante do dia, e disse:
-Ah, não é verdade. Quando você for tão velha quanto eu, minha boa gordota, vai saber que existe coisa melhor pra se colocar na feijoada do que crianças macias e gostosinhas.
-Melhor do que crianças? – perguntou a diretora do orfanato, arregalando os olhos. – O que pode ser melhor do que uma criança tenrinha?
-Ah, não digo não – Cynara disse, só pra fazer manha.
-Ora, por favor – insistiu a diretora, fazendo um carinho desajeitado e muito falso no papel de embrulho que cobria a cabeça de Cynara.- Diz pra mim, simpática e vetusta velhinha coroca.
-Ok, vou dizer. Mas só porque você é uma gorda simpática e rechonchuda. A melhor coisa do mundo pra se colocar na feijoada na verdade são três coisas. Vou dizer em ordem crescente de gostosura. Está anotando?
-Estou.
-A Terceira Melhor Coisa do Mundo pra se Colocar Numa Feijoada é um robozinho de plástico todo escangalhado. A Segunda Melhor Coisa do Mundo pra se Colocar Numa Feijoada é uma boneca de plástico toda despedaçada. E a Melhor Coisa de Todo o Mundo pra se Colocar Numa Feijoada – Cynara disse – é um soldadinho de chumbo todo derretido. Anotou tudo?
-Anotei – disse a gorda. – Mas é estranho. Se colocar os três juntos não vai ficar temperado demais?
-Não, é uma delícia. Não é, Seu Agenor? – Cynara perguntou, cutucando o irmão menor.
-Ô – Cláudio disse.
-Não é verdade, seu Nicanor? – Cynara perguntou, cutucando o irmão do meio.
-Não tem nada igual.
Nisso Cynara olhou para os irmãos e percebeu que os três estavam desenrugando, e que se ela demorasse mais um pouquinho a mulher ia perceber o engôdo (que eu gosto de escrever assim com chapéu mesmo, me deixem). Então Cynara disse, pondo uma perninha enrugadinha na caixa onde tinha passado a noite:
-Conselho de velha caduca, ouve o que eu estou te dizendo: põe a gente nessas caixas e devolve a gente na casa do homem que enganou você. Exige três crianças no lugar dos três velhos corocas que você está devolvendo. Daí você faz feijoada com essas crianças, ok?
-Ok – disse a gorda.
-E aproveita e pergunta se eles não têm um robô, uma boneca e um soldadinho de chumbo sobrando pra dar pra você, pra dar aquele gostinho especial.
-Nhame-nhame – disse a gorda, se babando toda de antecipação da feijoada que ia preparar. – Está bem.
Em seguida as crianças entraram nas caixas, que a diretora do orfanato embrulhou e amarrou com fitas. Depois ela começou a andar na direção da casa do professor, que ficava do outro lado da cidade de Leipzig. Ia equilibrando as caixas na cabeça, no ombro e nas tetas.
Agora sou obrigado a dizer que de vez em quando ela arrotava uma criança que ela tinha comido no café da manhã. Fiapos de crianças estavam pendurados nos seus dentes, porque ela era muito porca e não passava fio dental. Uma unha de criancinha estava presa entre os dois dentes superiores da frente dela, e a diretora do orfanato, enquanto caminhava, ia tentando tirar a unha do lugar com a língua. Aquilo já a estava deixando maluca.
A certa altura ela tentou tirar a unha com o cantinho de uma das caixas. Depois de vários minutos com a gorda parada no meio do mercado de Leipzig esfregando uma caixa nos dentes, a unhinha finalmente saiu do lugar.
Ela cuspiu a unha com gosto, e continuou andando na direção da casa do Professor Boombeck.
III
Vejamos agora como iam as coisas na casa do Professor.
Naquela manhã a Sra.Boombeck, que tinha ido dormir muito cedo na noite anterior sem ter visto o que tinha acontecido, acordou com a campainha. Era o carteiro, que lhe entregou três crianças extraordinariamente repelentes, todas elas chamadas Jorginho. Elas vinham de banho tomado e amarradas com lacinhos.
-Yo soy Jorginho – disse Jorginho 1.
-Yo soy Jorginho también – disse Jorginho 2.
-Mira, yo también soy Jorginho – disse Jorginho 3.
-Do orfanato, em troca pelos seus filhos – o carteiro disse. – E uma péssima troca, se me permite dizer, Sra.Boombeck.
Todas as pessoas têm um lado repelente. Eu mesmo sou egoísta e preguiçoso, e trocaria você, meu filho, por uma hora a mais de sono numa manhã de inverno, ou até mesmo de verão. Mas aquelas crianças eram conhecidas no mundo inteiro pela sua extraordinária repelência. Não sei nem como explicar de que modo exatamente eles eram repelentes. Não era nada do que eles diziam ou faziam. Você tinha que olhar pra eles pra entender.
Mal consigo escrever, minhas mãos tremem de fúria só de pensar nos três Jorginhos. Espera, vou me acalmar um pouco.
Me acalmei. Mas não a Sra.Boombeck! Ela havia acabado de saber que os seus filhos tinham sido dados a um orfanato pelo marido cabeça-oca. Devia ser a terceira ou quarta vez que ele fazia isso. E o que a irritou mais ainda é que, quando ela foi acordar o marido, reparou que a decoração do quarto, e aliás da casa toda, havia sido mudada: os espelhos haviam sido quebrados, as paredes pichadas. Tudo que era dourado havia sido raspado com a ponta da baioneta do soldado, que brilhava de longe.
O Professor Boombeck mal lembrava de ter entregue os filhos no orfanato, e aceitou estoicamente a fúria da mulher, só ficando realmente horrorizado quando percebeu que sua coleção de selos não estava mais em cima da cômoda. Foi encontrar os selos todos picados, alguns deles grudados nas paredes da privada, outros flutuando na água.
-Hobby idiota! – disse o soldado lá da sala.
O robô ouviu isso e riu, com a lanterninha vermelha no seu peito piscando sarcasticamente.
E, para piorar, os três Jorginhos estavam agora brincando com os brinquedos dos filhos dela! Educadamente sentados quietinhos no tapete! Ondas de horror atravessavam as costas da Sra.Boombeck como torcedores pelados correndo por um campo de futebol.
Examinemos com cuidado, desgosto e volúpia o quadro repelente:
Jorginho 1 brincava com o robô fazendo com que ele trabalhasse empilhando bloquinhos de madeira para a construção de uma creche.
Jorginho 2 brincava com a boneca Conchita fazendo com que ela estudasse direito para se tornar advogada de presos políticos.
Jorginho 3, que era contra guerras, fazia com que o soldadinho de chumbo interviesse pacificamente num conflito de pretos da África, e desse saquinhos de arroz pra eles.
O robô, a boneca e o soldado pareciam achar essas brincadeiras construtivas, educativas e superduper, e olhavam para os Jorginhos com admiração e amor. Eles mesmos estavam com a mesma cara de banhinho tomado dos três Jorginhos.
De tanta fúria o corpo da Sra. Boombeck balançava precariamente, como o chifre dum unicórnio num filme que eu vi uma vez de madrugada. Foi nesse momento que a campainha tocou de novo. Era, claro, a diretora do orfanato, com três caixas equilibradas na cabeça, no ombro e nas tetas.
-Toma esses três velhos de merda – disse a gorda do orfanato para a Sra.Boombeck – E me dá de volta os meus três Jorginhos.
O Professor, que eu já disse que era um pouco burro, olhou para as três caixas em dúvida e abriu a boca para dizer que não se tratavam de velhos, mas foi contido pela mulher, que espetou as unhas nas suas costas.
-Leva, pode levar.
Cláudio, Milton e Cynara saíram das caixas e, devagarzinho, para se fingirem de velhos, sentaram no sofá, tossindo muito. Disseram que o filme que estava passando na tevê era bobagem, que tinha muita violência e tal, e pediram pra botar na novela, como os velhinhos fazem.
Os três Jorginhos se agarraram em tudo o que puderam, na árvore de Natal, numa mesinha com xícaras de porcelana, nas pernas do casal Boombeck, mas nada adiantou: a gorda do orfanato batia nos dedinhos deles com uma colher de ferro que ela tirou da cintura, e eles soltavam o que quer que estivessem agarrando. Berrando e gemendo, e soltando ranho por vários buracos que ninguém esperaria que soltassem ranho, foram enfiados nas caixas.
-Absurdo!- gritou o robô de plástico.
-Pobres Jorginhos! – gritou a boneca Conchita.
-Gorda asquerosa! – gritou o soldado de chumbo.
A gorda olhou pra eles ali na frente dela e mal acreditou na própria sorte. Exigiu os três brinquedos como compensação, o tempo todo pensando que bela feijoada ia fazer com as três crianças, uma boneca, um robô de plástico e um soldadinho de chumbo. É claro que o casal Boombeck aceitou na hora – e em poucos segundos os três brinquedos, berrando palavrões horríveis que fariam corar um presidiário, foram enfiados nas caixas junto com os três Jorginhos e levados embora.
IV
Naquele mesmo dia a melhor feijoada da história do mundo foi servida no Orfanato de Leipzig, ali perto da praça Birbenstein. Não havia sobrado nenhuma criança no orfanato para provar o prato porque, lamento dizê-lo, todas elas tinham sido comidas nos dias anteriores, mas as amigas da gorda (e a própria gorda) ficaram muito satisfeitas com o gostinho da comida. O cheiro adocicado saía das janelinhas estreitas do orfanato e tomava conta da praça e das ruas adjacentes, deliciando as pessoas que passavam na rua.
Dizem, no entanto – e eu não tenho como confirmar – que a feijoada teria sido mais saborosa se o soldadinho de chumbo não tivesse escapado no último instante, atirando com a sua baionetinha nas bochechas das amigas da gorda e fazendo cosquinha em todo mundo com suas balinhas minúsculas. Antes de pular da janela para a rua Max Schreck, o soldado foi ouvido jurando vingança contra os filhos do Professor Boombeck.
Agora: se você conhece Leipzig, sabe que o Orfanato e a Casa dos Boombeck (que fica perto do Teatro Burgenheimer) ficam em bairros distantes um do outro, com vinte quilômetros de distância entre os dois. Ora, o soldado de chumbo tinha perninhas de, no máximo, dois centímetros. Calculando que cada passo do soldado cubra uma distância de dois centímetros (deitei no chão agora para verificar que cada passo que eu dou tem no máximo o cumprimento da minha perna), e que o soldado consiga manter uma média de dois passos por segundo, temos que
4 cm/seg = (4cm x 60)/1 min = 240cm por minuto ou 2,40m/min ou –
– mas deu preguiça de terminar a conta. Basta dizer que o soldadinho de chumbo vai demorar 100 anos pra chegar na casa dos Boombeck e conseguir vingar seus companheiros mortos.
Quanto a Cláudio, Milton e Cynara, devo dizer que eles passaram um bom Natal, mesmo sem ter ganhado nenhum presente. Estavam felizes pelo simples fato de estarem vivos, e em casa, comendo rabanada e chocotone.
E isso me leva à moral da história, meu filho:
Se você não gostar do seu presente de Natal, jamais reclame – porque pode ser que, ao invés de devolver o seu presente, o seu pai devolva você.