Adeus, Professor Benedict!
por soaressilva
(publicado na Vip em 2006 ou 2007)
Talvez seja minha culpa, porque eu sempre sonhei com uma Universidade Ideal. Desde a infância eu sonhava com uma universidade que talvez ficasse num prédio desenhado por Sir Christopher Wren – se vai sonhar, sonha de verdade – onde homens de tweed, tímidos, brilhantes, e tão distraídos que em certos dias viriam para a sala descalços dum pé, me explicariam tudo sobre Thomas de Quincey, Edward Lear, Sir Walter Scott.
Eu sabia que a escola havia sido uma porcaria, mas alguma coisa era ensinada na escola, e todos diziam que a universidade iria ser muito mais difícil; e por isso eu me sentia justificado em idealizá-la. Lendo as informações sobre cada curso antes do vestibular, eu levava tudo aquilo a sério: se a universidade tal e tal dizia que o curso X ia cobrir este assunto e mais aquele, eu acreditava e ficava empolgado.
Que schlemiel.
Eu gostava muito daqueles filmes americanos em que o estudante se inscreve no curso de um professor brilhante!, porém tirânico!, e logo na primeira aula o professor humilha o estudante e tal. Quando está para ser reprovado, o estudante pensa em desistir do curso, volta pra cidadezinha do interior de onde veio e fica bebendo cerveja na varanda, mas o professor o procura em casa e diz “Mr.Williams” – o professor chama todo mundo de “Mr.”, é muito pomposo – “Mr.Williams, o senhor é um dos estudantes mais brilhantes que já tive a honra de ensinar. Mas é preguiçoso! Não diga nada, apenas escute! Decidi lhe dar uma segunda chance. O senhor tem cinco dias para estudar os capítulos 5 a 22 de Ferguson e Sturlock.” “Cinco dias! Mas é impossível, Prof.Benedict!”, o estudante gritava, ou seja lá qual fosse o nome do professor, e eu gritava “Putz!”. Mas o professor só repetia: “Cinco dias, Mr.Williams! Boa noite!” E daí eles mostravam uma sequência do estudante passando noites acordado, tomando muito café e lendo até debaixo do chuveiro pra não pegar no sono.
Eu adorava tudo isso, e queria passar por isso, e queria um professor exatamente assim.
Eu sei, ninguém me mandou ser bobo. Sem saber eu estava me preparando para uma decepção, e ela veio logo no primeiro dia: onde estava o busto de Samuel Johnson que devia ficar logo na entrada da escola? Onde a hera? Onde as equipes de remo? O professor é esse mesmo com cara de bobo? Ele realmente escreveu “Hemingay” na lousa? E os alunos realmente copiaram “Hemingay” nos cadernos sem rir nem dizer nada?
Me formei em Língua e Literatura Inglesa na PUC de São Paulo, na primeira metade da década de noventa. E nos quatro anos do curso de Língua e Literatura Inglesa nunca tivemos que ler uma peça de Shakespeare.
Não estou dizendo que foi um sofrimento horrível. Sem dúvida teria sido pior passar esses quatro anos trabalhando (bate na madeira). O curso só ocupava as minhas manhãs e não dava trabalho nenhum: eu podia passar o resto do tempo lendo o que eu quisesse e dormindo. No único trabalho em grupo de que me lembro eu tive que cantar um rap sobre ecologia (rap! eu!), o que era humilhante, mas não trabalhoso. Além disso eu era o único homem da sala e passava as aulas numa espécie de flerte contínuo com garotas muito bonitas que, acredito, continuam sem ter lido Shakespeare.
Ser formado em Literatura Inglesa sem jamais ter lido Shakespeare, Dickens, Trollope, Chaucer, Browning, Kipling, Tennyson, Shelley, Keats, Thackeray, Congreve, Austen, Waugh, Defoe, Swift, Coleridge e as irmãs Bronte é como se formar em medicina sem ter chegado perto de um corpo humano. Não é isso? Não é exatamente isso? Não acho que existam no Brasil faculdades de medicina que sejam tão ruins assim (se bem que, vai saber), mas todos os outros cursos, especialmente os de humanidades, têm mais ou menos esse nível de seriedade, e se você acha que não e espera uma coisa melhor para o seu filho, perca as esperanças.
Oh, ok, nos mandaram ler um soneto de Shakespeare. Um. Além disso, nos quatro anos de curso, tivemos que ler:
1) O conto “Rappaccini’s Daughter”, de Hawthorne.
2) O conto “A Rose for Emily”, de Faulkner.
3) O conto “The Fall of the House of Usher”, de Poe.
4) O livro “Animal Farm”, de Orwell.
5) O livro “The French Lieutenant’s Woman”, de John Fowles.
6) Um poema de e.e.cummings.
Tendo lido isso, e umas dez apostilas de semiótica (a PUC é tragicamente boa em semiótica), nos formamos em Literatura Inglesa. O que vou dizer é estritamente verdadeiro: se um médico soubesse tanto da matéria dele quando as minhas colegas formandas sabiam de literatura inglesa ao final do curso, você morreria assim que entrasse no consultório dele, mesmo que só tivesse entrado lá para medir a pressão.
O que causa tudo isso? Eu diria que a simples incompetência é um fator subestimado. O professor de literatura não conhece muito de literatura, o professor de história não conhece muito de história. Lembro que uma professora muito respeitada no meu curso de pós-graduação, quando pediram um exemplo de pintor barroco, respondeu “Matisse”. Não acho que um salário mais alto atraísse para a profissão pessoas que sabem que Matisse não era barroco. Na verdade acho até que o salário da velhinha era bem alto. Minha tese, se é que a minha experiência vale alguma coisa, é que pessoas com conhecimento das próprias áreas são afastadas da profissão não pelos salários, mas pela própria estupidez do ambiente.
Há também, claro, a política. O professor de literatura pode não estar muito interessado em literatura, e o professor de arte pode não estar muito interessado em arte – mas pode apostar que os dois se interessam muito por política. Política é o interesse principal das pessoas que não têm nenhum interesse em particular.
Interrompem as aulas para falar de política, quase sempre com o apoio das reitorias. Digo, minha namorada estuda cinema numa universidade privada em São Paulo, ok? Seu professor de roteiro gastou uma aula inteira para defender a tese de que George Bush mandou derrubar as Torrer Gêmeas, “com patrocínio da Coca-Cola”. Ela reclamou do tempo perdido. Ele disse que mais importante do que saber fazer um roteiro era “fazer pensar”, e fez a mesma coisa na aula seguinte. Ela foi reclamar com o reitor e ele parecia atônito que ela encontrasse motivo de reclamação. Ninguém na sala dela sabe escrever um roteiro até agora.
E se calhar a situação é pior lá fora. O professor e crítico Harold Bloom, por exemplo, lamenta que na academia s artes tenham sido postas de lado em favor do que ele chama de “a Escola do Ressentimento”: “pseudo-marxistas, pseudo-feministas, discípulos aguados de Foucault…”. O ex-marxista e agora conservador David Horowitz não só publicou uma lista de “Direitos Acadêmicos” para proteger professores e estudantes que não são de esquerda como publicou um livro com uma lista de professores mais preocupados em fazer propaganda política do que se ater ao currículo: “Os Professores: Os 101 Acadêmicos Mais Perigosos da América”. Concordo com o sentido geral da coisa, mas acho que chamar de “perigosos” a essas criaturas de boina e bottom é tornar tudo romântico demais.
O que esses professores precisam entender é que nós que não somos de esquerda não pedimos que eles ensinem na sala de aula a tradição da direita política – Burke, Hayek, Mises, Kirk, Friedman, Oakeshott, etc. Não se trata da substituição das esquerdices por direitices. O que se pede é que eles ensinem a matéria deles. E não prejudicaria nada se eles soubessem a matéria deles, a fundo, e não passassem metade do tempo em greve, e não me fizessem cantar raps sobre ecologia.
Quanto à literatura, qualquer coleção de contos da Penguin vale mais do que um curso universitário.
Pera, o que é isso?!
*ajusta os óculos*
É um post… com data… deste ano? Espera, tem algo errado aqui.
*tecla furiosamente*
Não, é isso mesmo. Post novo! ASS está vivo!
excelente!!! pena que só agora descobri esse blog…