Tetê Macabra e o Brasil Secreto
por soaressilva
Tetê Macabra (née Mitchell Costa) era uma mecenas paulistana dos anos cinquenta e sessenta que costumava reunir na sua casa de Perdizes um bom número de gênios da arte.
Não quaisquer gênios da arte.
Nenhum gênio da arte que de fato e de modo óbvio produzisse arte. Se algo de bom se pode dizer sobre Tetê Macabra, é que tinha bom gosto demais para convidar para os seus chás (quartas e quintas) gênios explícitos e grosseiros como Di Cavalcanti ou Carlos Drummond de Andrade. Tetê Macabra convidava só quem ela pressentia ser um gênio da arte que jamais havia produzido arte alguma, que sequer falava de arte sem ser coagido, e que havia se enterrado em alguma profissão longe da arte e da sua irmãzinha imbecil, a boemia.
Nos seus chás apareciam engenheiros de minas, professores de karatê, massagistas, dirigentes de basquete, pilotos de helicóptero, dermatologistas. Eram todos gênios, ela dizia, ou pelo menos grandes talentos, ela dizia, da arte, embora não desenhassem nem cantassem nem coisa alguma. E percebia-se isso (mas só ela percebia isso, e talvez também seus escudeiros Nuno Tavinho e Dioná Pampulha), por sinais bem pequenos: a apreciação justa de uma goiabada, a escolha de duas palavras no meio de uma frase de seis, ou até uma pausa ou um franzir do nariz. Perto desses vidraceiros, dizia Tetê, perto deste zoólogo gordo e gago (apontando pra ele), como são imbecis, como são vulgares, como são pequenos os grandes gênios das enciclopédias.
Quando lhe perguntavam: e se chamássemos Vinícius? E se chamássemos Murilinho Mendes? – ela dizia: na minha casa jamais vão entrar essas (aqui fazia carinha de nojo) pessoas das enciclopédias. Um homem que entra numa enciclopédia – não há fracasso maior na vida. É quase tão ruim quanto aparecer na seção de crimes do jornal.
Gunther Baptista Briguet era um executivo meio-alemão meio-cubano que veio para o Brasil em 1959, fugindo da praga dupla da revolução cubana e do mambo. Gunther se estabeleceu primeiro em Ribeirão Preto, onde dirigiu uma fábrica de tinta (no singular: só fabricava uma cor, “stil de grain pardo”, pela qual era obcecado), e depois no Rio, onde se tornou presidente de uma companhia aérea cujos aviões eram todos pintados de stil de grain pardo.
Numa viagem de negócios para São Paulo, em 66, a então namorada de Gunther o arrastou da garçonnière que ele mantinha no Pacaembu para um chá na casa de Tetê Macabra, em Perdizes. “Vamos, amoreco, só dá gente bizarra.” Foram a pé, subindo com pernas bambas de sexo as calçadas íngremes dos dois barros vizinhos. Gunther era um homem quadrado e corpulento, com cabelo aloirado, e ela, sua namorada, esqueci. Suponho que era bonita.
A famosa casa de Tetê Macabra ficava no número 416 da rua Aimberê, então grafada Aymberê, onde é hoje a pizzaria Datemi un Martello. Ao contrário da pizzaria, que é uma construção sem graça de tijolo noturnamente transfixiada por uma luz azul fria que faz o fregueses de qualquer sexo parecerem prostitutas de George Grosz, a casa que ficava ali naquela esquina, naquela quarta de maio de 66, onde Gunther e sua namorada chegaram um pouco suados, era um palacete de Ramos de Azevedo com três andares, uma torrinha, uma garagem estreita e comprida que ficava numa construção separada, um jardim de palmeiras e um quintal de manacás.
Atravessaram o cascalho do jardim, Gunther e namorada esquecida, e depois de subir quatro degraus e da namorada (digamos que seu nome fosse Astrud) ter apertado a campaínha, a porta foi aberta por Nuno Tavinho, factotum da casa, taciturno, descalço, as barras das calças creme dobradas canelas acima, redolente de homossexualidade e esteticismo, como se os seus olhos doessem se esbarrassem em qualquer coisa menos bonita do que um quadro de William Turner. Entretanto isso não podia ser verdade, porque ele olhava todos os dias, e olhava com gosto, para o rosto inestético e charmoso de Tetê Macabra, tantas vezes comparado a uma lasca de um tronco de ipê carcomido pela chuva e coberto, em lugares assimétricos, de orelhas de pau.
E de fato esse era o rosto de Tetê Macabra, exceto que inteligente, uma característica que saltava dele pra fora com uma projeção espantosa; Tetê parecia tão inteligente que todos à sua volta queriam continuamente lhe perguntar o segredo da vida, e conviviam com ela na esperança de que, de comentário em comentário, ele fosse articulado de forma definitiva. Nunca foi, certamente; ou esquece esse certamente, talvez tenha sido; mas apesar dos esforços de Nuno Tavinho e Dioná Pampulha, que compilavam em papéis soltos tudo o que ela dizia, faltou que inteligências rabínicas analisassem o conjunto das opiniões de Tetê.
Haveria uma filosofia de Tetê Macabra? Uma visão do mundo? Na verdade não se sabe até hoje a opinião de Tetê sobre quase nenhum dos grandes assuntos – os comentários registrados por Tavinho e Pampulha são sobre bolos de fubá, gatos, design de carros, arquitetura indígena, drogas, dioramas, a onda dos frisbees, androginia, vitrais, cacomaníacos, a Nasa, sotaques dos diferentes bairros de São Paulo, e modos de fazer furos em cintos.
E lá estava esse mesmo rosto num canto da sala, os olhos projetando inteligência e desprezo para um vereador que falava, o Sr Ivan Bergamota. Embaixo do rosto de Tetê estava um corpo extraordinariamente em forma, e feminino, muito feminino, o que em contraste com o rosto feio era na verdade um atributo desagradável e chocante. Ou pelo menos essa foi a primeira impressão de Gunther, que continuou arrastando os olhos pela sala pra ver se havia lá pelo menos uma mulher bonita. Não havia.
Porém: assim que os olhos de Tetê se fixaram em Gunther, e Gunther, pobre Gunther, se viu o receptáculo passivo daquela inteligência, Gunther esqueceu a impressão de desagrado que tinha sentido cinco segundos antes, e a beleza dos olhos de Tetê adoçou o rosto todo que estava em volta, e o corpo bonito que ela empinou um pouco nesse momento (vestia um pulôver apertado nos peitos) terminou de fazer o serviço. Gunther se apaixonou – um pouquinho só, como era o seu jeito. Mas continuou segurando a mão suadinha de Astrud.
O pobre Sr Ivan Bergamota, vereador paranaense famoso por ter pensado em fazer uma biografia de Lêdo Ivo mas depois mudado de idéia, era um homem com a reputação de inteligente e por isso mesmo tinha sido trazido até ali naquela tarde como o convidado mais importante do dia. Mas aparentemente havia soçobrado, tropeçado nos degraus das próprias percepções tacanhas, enganchado os pés nas calças da mediocridade da qual desesperadamente tentava se livrar enquanto falava, falava e falava, sobre o movimento beatnik e rapazes cabeludos (ele “via valor” nessa gente; ele “tinha esperança nessa juventude”). Durante os prévios dez minutos Tetê Macabra havia furado as bochechas do orador paranaense com o seu olhar pontudo, deixando marcas de varíola que, vá lá, talvez estivessem lá antes, mas agora Tetê só olhava para Gunther.
Como era dura a indiferença de Tetê Macabra! O Sr Ivan Bergamota, cuja voz ribombante havia feito tremer partidos inteiros na Câmera Municipal de Curitiba, foi desinflando, desinflando, falando cada vez mais baixinho, até que a sua voz era um mero arzinho escapando de um pneu, e outras vozes a cobriram. Deu uma ou duas olhadas com raiva para Gunther Baptista e depois começou a palitar os dentes.
Astrud chegou perto de Tetê:
-Tetê lembra de mim Tetê? Astrud filha do Paschoal, vim aqui com a Doralice. Tetê esse é o Gunther Tetê, ele é cubano, executivo de avião Tetê, louco pra conhecer você e a turma.
Tetê estendeu um braço longo para Gunther Baptista. Gunther pegou o pulso dela com alguma brutalidade e se curvou, beijando as costas da mão dela.
A combinação de brutalidade e gentileza fez os peitos de Tetê Macabra arfarem brevemente, seus olhos se arregalarem. Meu Deus quem é esse bruto maravilhoso?
-Sente-se, sente-se, Gunther… Sente-se aqui do meu lado, Dioná está de saída…
Dioná Pampulha, pupila de Tetê – uma menina gordinha – passou a estar de saída no momento em que foi informada que estava de saída, e saiu da cadeira. Gunther sentou.
-Agora vamos falar da morte – Tetê sussurrou no ouvido de Gunther, deliciosamente, ele achou. – Morte, Pacheco -, ela disse mais alto para um homem magrinho de gola rolê.
Ele estava consultando umas anotações.
-Ah, hm, ah…
Consultou mais.
-A morte, sim, a morte.
De repente enfiou as anotações no bolso da calça, sorriu, juntou as pontas dos dedos das mãos frias e brancas e disse:
-Pois bem, a morte.
E começou a falar da morte.
Falou bem, Gunther achou, como um Montaigne com quinze pontos de QI a menos que improvisasse um ensaio do qual mais tarde se arrependeria e queimaria na lareira.
Falou sobre a morte de Sêneca, e a morte de Garrincha; depois passou a falar sobre o assassinato de Kennedy e a morte de um hamster seu quando tinha nove anos, ligando as duas coisas de maneira surpreendente (esqueci qual maneira); depois falou sobre a possibilidade de morte por ingestão de fugu; pessoas famosas que haviam morrido engasgadas; depois mencionou uma novela de Tolstói, sem conseguir lembrar o nome do personagem do criado; mas, seguindo o costume daquele círculo, de passar rápido pela arte e de preferir ser artístico escolhendo assuntos considerados inartísticos, girou toda a conversa de modo surpreendente e passou a falar de astrologia e de mortes bizarras em elevadores.
Terminou descrevendo um tronco humano cortado ao meio com a precisão de um Rembrandt do Lausanne Paulista. Gunther ficou impressionado. Pacheco era um dos astros do círculo de Tetê, e naquela tarde estava em forma.
A conversa foi se abrindo para todos. Alguns falaram belamente sobre a morte de uma taturana ou de uma língua; o vereador Ivan Bergamota falou estupidamente sobre Hamlet.
Nuno Tavinho veio com uma travessa de queijo, e muitos levantaram e foram conversar em grupos menores. Gunther foi falar com Pacheco, o grande Pacheco; ou pelo menos o relativamente grande Pacheco comparado com as outras pessoas que habitam no país; e descobriu que Pacheco era um fabricante de meias, luvas e gorros de lã.
-O Gunther tá lendo esse livro do Tolstói que o Pacheco falou, não tá, Gunther – Astrud disse para Tetê, que olhou interessadíssima para Gunther.
-De fato.
-E no entanto você não mencionou isso quando o Pacheco tocou no assunto – Tetê disse, – e deixou que ele ficasse quase um minuto tentando lembrar o nome do criado do livro!
-Gerasim. De fato. Não quis interromper.
Isso firmou a paixão, e mais que isso a admiração que Tetê passou a sentir por Gunther durante anos. Quando alguém menciona um livro, poucos de nós resistimos a dizer que o lemos; Gunther tinha resistido mesmo durante o silêncio gaguejante de um minuto do Pacheco tentando lembrar os detalhes do livro. E mesmo depois não teria dito nada, se Astrud não o dedurasse.
Tetê percebeu isso, sorriu e olhou para o tapete, subitamente tímida de excitação sexual. Pousou a mão no antebraço musculoso de Gunther.
-Quero saber tudo sobre você. Você é tão fechado, tão reservado. Não pode, isso é um crime…
Era costume de Tetê reclamar carinhosamente de tudo que ela adorava.
E reclamou de Gunther durante anos:
-Mas pode esse homem? Onde já se viu alguém assim?
Durante anos Gunther manteve sua independência, continuando a morar no Rio, visitando São Paulo em finais de semana alternados, e saindo com muitas mulheres diferentes nas duas cidades. Mas à custa de afeto e, talvez, pompoarismo (dizem), Tetê o domesticou. Gunther abandonou o emprego na companhia aérea e se mudou para o segundo quarto maior da casa, forçando Nuno Tavinho a ir para o antigo quarto do motorista na garagem. E Gunther reduziu sua lista de amantes para só duas, Tetê e uma outra, que não entra nesta história (Astrud a essa altura já estava casada com um cardiologista).
Do seu quarto, que tinha mandado pintar de stil de grain pardo, Gunther às vezes descia de pantufas, fumando um charuto, para ouvir as pessoas nos chás das quartas e quintas. Falava pouco. Comia bastante bolo, e ficou gordo. Comia bolo, comia bolacha, bebia vinho do porto, e estudava as pessoas que estavam falando e que estavam ouvindo.
Tetê, por sua vez, o estudava as estudando.
Ela sempre tinha a impressão de que a presença de Gunther naquela casa era um milagre e que ele podia abandoná-la a qualquer momento. Se estavam os dois sozinhos, ele sério, e ele recolhia o ar como se fosse falar sobre um assunto desagradável, ela sempre passava um ou dois ou três ou até quatro segundos de terror porque achava (ela nem sabia o motivo) que ele ia romper com ela. Mas no fim ele falava de outra coisa, de contas a pagar ou da chatice de um dos convidados. Ele viveu dezenove anos naquela casa, de onde só saiu morto.
À noite Gunther e Tetê sentavam em um sofá de vime na varandinha que dava a volta na torre. Ele acendia um cachimbo, e os dois matavam uma garrafa de whisky, às vezes seguido de drambuie. Devagar os dois preparavam uma lista de convidados para os chás da semana seguinte. Ela escolhia a maioria dos nomes. Ele só vetava alguns, sem abusar do seu poder de veto, ou insistia em dois ou três convidados pelos quais tinha algum apreço em particular e Tetê não.
De modo geral, concordavam. Gunther havia aprendido o jeito teteístico de apreciar as pessoas e as apreciava também de jeito muito parecido. Além disso, achava que Tetê tinha uma sensibilidade maior que a dele para detectar gênios desconhecidos.
Aquelas pessoas – Tetê, Gunther, Nuno e Dioná, e mais toda a reserva de engenheiros, empresários, floristas, massagistas, herdeiros, michês, someliês, desempregados e olheiros de futebol de que dispunham – aquelas pessoas haviam se deparado umas com as outras na vida e ficado muito espantadas com o fato de não serem imbecis. Não teriam feito nada a respeito, só admirado as mútuas existências, se não fosse o gênio de Tetê, que fez com que todos se agarrassem com algum desespero no meio da brasilidade inclemente que os cercava, e se encontrassem às quartas e quintas para, durante quatro horas semanais, não serem imbecis juntos, não serem imbecis numa sala, não serem imbecis enquanto comiam sanduíches de pepino.
Uma noite, ainda no início do relacionamento, Gunther e Tetê fumando juntos na varanda da torrinha, Gunther massageando o próprio pé de meia, Gunther ficou um pouco em silêncio. Depois falou:
-Me ocorre algo que não é possível provar, Tetê.
-O quê, Gun?
-Venho pensando nisso faz tempo.
-Mas o quê, Gun, homem de Deus?
-Que em cada geração os homens mais inteligentes não sentem a necessidade da fama, e que portanto permanecem secretos. Digamos assim, em cada geração há uma casta secreta de homens de bom gosto existindo ao mesmo tempo em que a casta aparente de intelectuais. Entre a casta aparente de intelectuais, uns poucos têm talento, e uma maioria é imbecil. Entre os imbecis estão a maior parte dos escritores e jornalistas conhecidos de cada época, por mais respeitados que sejam. Eles não se dedicam de fato à vida da mente, mas enganam durante algum tempo, e talvez enganem a eles mesmos; ou talvez até se dediquem à vida da mente, mas imbecilmente, que é o que podem fazer com a mente que eles têm.
-Você devia repetir isso no chá de quarta, Gun.
-Repetirei. Mas ouve. Na casta secreta estão só as pessoas que genuinamente se dedicam à vida da mente, mas que nasceram sem a necessidade de tornar o próprio nome famoso. Alguns deles publicam um livro, mas não fazem nenhum esforço para promovê-lo, como a Estelita e o Ascasubi, ou para publicar um segundo, como o Dr Muller; outros publicam dois ou três, mas só espalham entre amigos, como o Pacheco; outros escrevem um ou outro artigo para jornal, talvez um jornal de associação profissional ou algo igualmente obscuro…
-Outros escrevem cartas para os amigos, como a Núria… – disse Tetê.
-Sim, como a Núria. Ou livros que deixam na gaveta. – Gunther não falou, e Tetê não sabia, mas ele mesmo tinha alguns contos na gaveta. – Minha idéia é que essas cartas, esses livros que ficaram na gaveta, essas conversas que os membros da casta secreta tiveram uns com os outros, são em cada geração a verdadeira vida civilizada existente, e não as obras-primas visíveis e conhecidas – ou pelo menos não só as obras-primas visíveis e conhecidas. E que da mesma forma que existe uma tradição contínua entre as castas aparentes se estendendo da Grécia até hoje, há também uma tradição secreta se mantendo através dos séculos – não no sentido de que ela lutou para ser esotérica, não no sentido de colégios místicos de origem hindu, mas só no sentido de que essa tradição secreta foi sempre demasiadamente discreta e tranquila para ser conhecida. Como essas obras secretas não são publicadas, ou se são publicadas não sobrevivem, ou sobrevivem com uma certa fama discreta que vai morrendo aos poucos, essa tradição é passada adiante de pai pra filho, de tio para sobrinho, de padrinho para afilhado, de mentor para protegé etc, através de conversas e do contato diário. Estou falando, claro, de pessoas como as que recebemos aqui, especialmente o Pacheco, a Núria, o Dr Ricardi, a Helen Stormbringer – pessoas que não se tornaram famosas não porque tentaram e não conseguiram, nem porque lutaram muito no sentido oposto (o que lhes daria uma aura de sociedade secreta que eles achariam um pouco ridícula), mas simplesmente porque queriam alguma outra coisa da vida – sossego, dinheiro, passear no parque com o neto, jogar frisbee, o que seja.
-Você está falando de você mesmo, Gun.
Gunther fingiu que ignorava isso e passou a mão distraidamente nos seios de Tetê.
-Essas reuniões, esses chás que você faz, desde 45, é isso?, esses chás, essas reuniões, me mostraram isso com muita clareza. Acho que em cada geração a civilização é mantida viva porque foi discretamente carregada nos ombros caídos de gente como o Ferreira Schumann, a Sônia di Pacci, a Helen Stormbringer, enquanto a casta aparente fazia discursos solenes e sonolentos, e escrevia editoriais imbecis, e, sim, muito ocasionalmente, e ocasionalmente demais, obras-primas.
Tetê colocou a mão entre as pernas dele.
-Fale mais – ela disse.
-Acabei. – Ele sentou pra trás na cadeira e abriu mais as pernas gordinhas. – Bom, era isso. Queria agradecer você por, com o seu esforço, reunir essa gente, e me fazer ver essas coisas.
-Essas coisas todas?
-É.
-E como é que você vai me agradecer por isso tudo?
-Você vai ver como eu vou agradecer, Tetê.
-É?
-É.
-E como é que é?
-Assim.
-Aaahn, assim?
-E assim.
-E vem cá, e assim – puxando a mão dele, – assim não?
-Meu Deus, Tetê. Tem gente passando na rua.
-Onde?
-Ali… e ali…
-É assim que você gosta, seu calhorda.
-Ah, Tetê.
Recuemos pudicamente diante do súbito espetáculo pornô na torrinha do palacete, e voemos um pouco pela noite paulistana de 1966. É uma noite quente, e mariposas batem nos nossos rostos. Nossos pais são jovens lá embaixo, e namoram, trabalham, riem. E o som contínuo e sem hesitação que sobe até os nossos ouvidos, atravessando um telhado e vários metros de ar noturno, tec tectec tec tec tec tectec, não é o som de Gunther e Tetê transando, porque já nos afastamos demais deles – é o som do jornalista Jânio de Freitas escrevendo mais uma coluna imbecil na sua máquina Olympia Splendid 33.
Já deu tempo de voltarmos? Deu tempo demais, se passaram dez anos. É noite de novo. Voemos de volta para a torrinha, passando desta vez pelo chuvisco de inverno, por Higienópolis, e pelo som contínuo e sem hesitação, tectec tec tec tectectec, do escritor Ignácio de Loyola Brandão escrevendo um romance bem ruim na sua DARO ERIKA modelo 41.
Mais adiante, em Perdizes, aquela torrinha iluminada: sentados no mesmo banco de dez anos antes, Gunther, mais gordo, o rosto um pouco mais inchado pela bebida, de chapéu de panamá, camisa stil de grain pardo e calça branca, fumando um charuto toscano tortinho, e Tetê Macabra ao lado dele, imutável, severa, esplêndida, de malha de angorá e saia de tweed, e botas militares com tachinhas enfiadas nas bordas, bebendo chartreuse. Um livro de poemas de Verlaine repousa entre eles, embaixo de um livro infanto-juvenil sobre a história das lentes de telescópio.
Gunther está calado faz tempo. Quase um ano, na verdade. Está em crise. Tem faltado nos chás de quinta, às vezes nos de quarta, e Tetê se pergunta se ele arrumou uma amante nova. Mas não, nem sabe ela que às quintas, às vezes às quartas, Gunther anda à toa pelos parques, ou entra na biblioteca municipal e lê enciclopédias entre os desempregados.
Gunther evidentemente está se forçando a falar algo difícil. Tomou ar, abriu a boca e deixou aberta sem falar nada. Olha para os seus próprios pés inchados e nus com unhas grossas.
Tetê fica tensa. É agora que ele vai terminar com ela. Vai fazer as malas, mudar para a casa de outra. Como vai ser a vida sem ele? A poltrona dele vazia durante os chás, como aliás tem ficado, mas não em caráter permanente meu Deus? Como vai ser o quarto dele vazio? Como vai ser a vida dela só com o Nuno Tavinho em casa – uma companhia mais triste que o câncer? Tetê se controla para não arfar visivelmente.
Que mulher, a Tetê. Olhando, não se nota nada.
-Olha Tetê.
Tetê impassível bebendo mais chartreuse do que a rigor queria.
-Vou falar uma coisa, Tetê.
-Fala, Gun.
-É difícil. Mas tenho pensado muito nisso.
-Quer um gole?
-Não.
(Pausa longuíssima.)
-Faz um ano que venho pensando nisso. Na gente. Nas pessoas que vêm aqui nas quartas e quintas. No nosso círculo. Na vida que a gente construiu.
Gunther olhando bem nos olhos de Tetê.
-Não te dá um desespero? Às vezes?
-Como assim?
Gunther suspirou.
-Tá, alguns deles são gênios. O Rosiska. O Pacheco. A Sônia di Pacci. A Helen Stormbringer. Você é uma gênia. Até eu sou um gênio. – Gunther levantou e começou a andar de lá pra cá. – Mas de que adianta tudo isso? De que vale ser um gênio numa conversa sobre ovos pochê ou trens de luxo, sobre o vento ou sobre o cafuné, como o Pacheco é um gênio falando sobre cafuné – mas e daí? Ser esquecido assim que terminou de falar? Não deixar nada duradouro na Terra? Nada, nada? Só migalhas de torrada no tapete?
-Não sabia que isso te incomodava, Gunther Baptista.
-Não me incomodava. Mas agora me incomoda. Talvez porque a morte esteja mais perto de mim. E está mesmo. Estou gordo, a minha pressão está alta – ele fumou o toscano. – Nesses últimos anos eu fiquei olhando essa gente falando nos chás das quartas e quintas e fiquei só pensando, que esterilidade, que esterilidade impressionante, que esterilidade horrorosa. Tem algo de doentio nisso. O que é que essa gente toda vai deixar? O que é que a gente vai deixar, Tetê? Quem vai se lembrar da gente dois dias depois da gente morrer? Eu te pergunto, Tetê, não vale mais a pena ser um bosta que nem o Antonio Callado, o Rubem Fonseca? Eles pelo menos vão ser lembrados uns quatro ou cinco anos depois da morte deles. Eu, nem isso. O Pacheco, coitado. O Pacheco vai ser esquecido na metade do velório, por mais brilhantemente que tenha falado sobre cafuné.
-Você quer muito ser lembrado? Por alguém além de mim?
-Não sei. Sim, quero. O que me incomoda é essa esterilidade – essa esterilidade dessa gente de bom gosto. Não valia mais a pena deixarmos esse bom gosto de lado e escrevermos uns romances mais ou menos, umas óperas assobiáveis? Não vamos deixar um soneto, uma limerique, uma caricatura num guardanapo de papel. E o que quer que tenham anotado do que a gente disse, vai ser publicado numa vanity press e esquecido na mesma hora.
Nisso tudo Tetê Macabra era inflexível:
-A imortalidade é uma grosseria.
-Que seja. Podíamos ser pelo menos um pouco mais grosseiros, é o que estou dizendo.
Gunther passou semanas sem conseguir sair da sua depressão.
Mas um dia tomou uma decisão: reescreveu e revisou o livro de contos que tinha na gaveta. Sondou um editor que aparecia nos chás e que ficou interessado na idéia de publicar o livro. O editor subiu para o quarto, ficou trancado lá lendo o livro enquanto Gunther bebia cerveja na sala. Passadas duas horas, o editor desceu. Disse que alguns contos eram bons mas que o livro, como um todo, precisava de mais trabalho.
E na mesma noite Gunther queimou o livro na lareira, tentando fazer com que o gesto não parecesse muito dramático.
-Eu queria ler. Você que sabe, você faz o que você quiser. Mas eu queria ler – Tetê disse, olhando o fogo.
-Continua com o seu Rex Stout, Tetê, que é melhor – ele disse sorrindo. – Beeem melhor.
Gunther pareceu de alguma forma aliviado com o fracasso da sua tentativa. Parou de falar em imortalidade. Começou até a se divertir mais nos chás, embora o nível dos convidados na década de setenta fosse um problema.
Voltou a arranjar uma amante, o que Tetê encarou como bom sinal.
-Agora está satisfeito e não me deixa.
-Ninguém te deixa, Tetê! – gritou o Nuno Tavinho.
Mas Tetê, que teria ficado contente com Gunther para sempre se ele nunca tivesse se revoltado contra a própria esterilidade, ficou desapontada que ele desistisse da sua revolta tão fácil. Agora lhe dava nos nervos quando ele ria relaxado e feliz nos chás, tremendo todo como um bonachão, hohohohoooo, um grande alemão bonachão, ou quando o pegava cochilando durante o dia. Queria gritar com ele que tentasse escrever mais um conto, um livro de memórias – que fizesse alguma coisa.
Ela tentava controlar a irritação, mas quando entraram na década de oitenta mais e mais ela era áspera com ele, e ele, percebendo que o impensável havia acontecido e que ele tinha perdido o domínio da relação, cometeu o erro de tentar apaziguá-la. Lhe dava presentes, lhe fazia carinhos, e, tanto quanto permitia o próprio orgulho, a bajulava um pouquinho, às vezes na frente de todo mundo. Passou a ser uma figura um pouco patética: os convidados mais jovens dos chás, que nunca haviam visto Gunther e Tetê no auge, o desprezavam um pouco. Havia perdido a seriedade. Era um palhaço.
E ela mesma arranjou um amante, na figura de um jovem arquiteto cabeludo que só falava em estrelas e astros de cinema, e que talvez fosse um pouquinho gay.
Em 83 Gunther teve um derrame, e ficou com a boca torta. Só Tetê o entendia. Mas Gunther ainda tinha alguma beleza, no seu jeito de alemão colérico. Sua amante vinha duas vezes por semana cuidar dele, e Tetê a deixava entrar. Mas achava a mulher burra demais, e nunca falava com ela.
O tempo passou. Tetê e Gunther ainda sentavam juntos no banco de vime da torrinha e falavam sobre os convidados, mal de uns, bem de outros. Geralmente só falavam bem dos velhos, que nem apareciam mais: o Pacheco tinha mudado de estado, o Rosiska tinha brigado com Gunther por causa de uma bobagem e nunca mais aparecido, a Sônia di Pacci e a Helen Stormbringer tinham morrido juntas num acidente de carro, e o Ferreira Schumann estava internado num hospício havia oito anos.
Não sobrava ninguém inteligente no Brasil? Não sobrava. Uma nostalgia indecente atingiu os dois, uma nostalgia pelo Brasil secreto que os dois tinham conhecido e vivido. E essa nostalgia foi reunindo os dois, reunindo, reunindo, até que largaram os amantes com algum alívio.
-Que imbeil que eu era – disse Gunther com a sua boca torta. – Esteilidade! Bah! Como eu queía conversa om o Pacheo de no-o.
-Como eu queria conversar com a Helen! – Tetê concordava.
-Om o Dr Ricardi!
-Com a Núria!
Tetê pegou na mão de Gunther. Apertaram as mãos com a força de campeões de queda de braço.
Nessa época Tetê Macabra fez a sua própria tentativa de conseguir a imortalidade. Ela sempre tinha achado que talvez pudesse ser lembrada pelo seu salão. As pessoas lembravam de Mme de Stael, não lembravam? E talvez pudesse ser lembrada por uma ou duas das suas melhores frases, como “A arte no século XX foi um insulto à burguesia. No século XXI, vai ser um pedido de desculpas”, ou “O ateu bom é uma criança que, quando os pais saem de casa, abre a geladeira e come brócolis”. Mas no fundo sabia que tudo isso ia ser esquecido.
Um dia ela chegou perto de Gunther, que lia na sala a seção de turfe do jornal, e disse tranquila:
-Comecei um livro.
Ele entendeu que havia um “a escrever” elipsado na frase: “comecei a escrever um livro”.
-Vai bem?
-Por enquanto – ela disse. – Vamos ver.
Era um romance sobre eles todos: sobre o Brasil secreto: sobre o Brasil inteligente que ela tinha conhecido nos anos cinquenta e sessenta. Sobre o Pacheco, o Dr Ricardi, o Ascasubi, a Sônia di Pacci, a Helen Stormbringer.
Sobre ela e Gunther também. Talvez principalmente sobre os dois.
Mas uma noite Tetê se juntou ao Gunther na torrinha e depois de algum tempo em silêncio ela disse:
-Não deu certo. O livro.
Gunther olhou pra ela um tempão.
-Ena.
-Tudo bem.
Gunther empurrou a taça de porto dele na direção dela. Ela aceitou.
Imagino que viveram o resto dos seus anos reconciliados com o esquecimento completo que esperava por eles. Felizes, talvez, com o fato de terem sido felizes um dia, durante quase duas décadas.
Quando morreram (Gunther Baptista primeiro, Tetê Macabra sete anos depois), foram de fato esquecidos.
Bom, eu mesmo me esqueci deles, e nada sei deles; e fui obrigado a inventar do nada os seus nomes, os seus sentimentos, e a sua breve história.
Que escrita agradável de ler!
Obrigado, Aluizio!
Que beleza, Alexandre. Que beleza!
Não é qualquer texto que consegue balançar o estoico em mim, mas você conseguiu fazer meus olhos suarem ligeiramente.
Parabéns.
Muito bom, Gunther! Feliz por você não ter queimado esse texto na fogueira.
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