A ÚLTIMA IRÔNIA DE MATIAS CHAPELIN

por soaressilva

Quando bebê de dois meses, o sr Matias, então chamado apenas de Mamá, caiu da cama e bateu a cabecinha no sinteco cruel – e, como consequência, para o resto da vida passou a escrever a palavra “ironia” com chapeuzinho: “irônia”.

Não é bem isso: o dano cerebral foi mais extenso e extinguiu todo o seu senso de humor, de modo que o sr Matias nunca mais conseguiu identificar uma piada. A única coisa que ele achava engraçada na vida era escrever “irônia”; era isso que ele achava que era uma piada, e ele ria muito desenhando chapéus de vários estilos e épocas (trilbys, panamás, fedoras, boinas, e mesmo chapéus egípcios ou astecas) em cima da letra “o”, cada vez que encontrava a palavra “ironia” numa revista ou num livro.

Quando seu filho Domingos Chapelin voltou de um intercâmbio na Austrália, casado com uma linda piada estudante de veterinária que ele havia conhecido na praia de Burleigh Heads, o sr Matias foi apresentado à piada mas não enxergou nada. “Pai, esta é aquela piada de canguru que eu falei pro senhor.” A piada estendeu a mão na cozinha dos Chapelins em Blumenau, mas o sr Matias ficou olhando imbecilmente pro filho. “Que piada? Que canguru?”

A piada de canguru segurou a mão do filho do sr Matias, pedindo paciência. Mas quando, na manhã seguinte, a piada acordou cedo e encontrou o sr Matias na cozinha, e berrou BOM DIA, SR MATIAS, para que não houvesse possibilidade de ser ignorada, ela mesma ficou chocada quando o sr Matias não disse pio, nem levantou a cabeça grisalhuda do jornal, ocupado que estava desenhando um chapéu de alpinista na letra o de ironia, na frase “há sem dúvida uma deliciosa ironia no destino do recém-defenestrado ministro; folgamos em compartilhá-la com os leitores desta coluna”, logo na segunda página do jornal de domingo. E depois de desenhar a pena no chapéu e reler gostosamente a frase o sr Matias riu sua risada chispada de fumante, sem saber que a dois passos de si uma piada australiana chorava em silêncio.

Três anos viveu a piada na casa do sr Matias, sem que ele desse pela sua existência; o velho cortando suas frases no meio; forçando-a a se desviar do caminho; e uma vez entrando no chuveiro enquanto a piada ainda tomava banho.

Porém logo Domingos Chapelin teve filhos com a piada de canguru com micropênis. Como sabemos, os filhos de seres humanos com piadas podem ser de cinco tipos: risadas; risinhos; sorrisos polidos; reações de indiferença; e desconfortos, causados ou pela sensação de que não estamos rindo tanto quanto o interlocutor gostaria ou pela sensação tão frequente de que estamos rindo de maneira esquisita. Todos os filhos de Domingos Chapelin com a linda e sensual piada australiana foram desconfortos. Quatro leves desconfortos logo alegraram aquela casa.

E desconfortos o sr Matias sentia, via e ouvia. Como explicava o sr Matias a existência destes desconfortos que ele via perfeitamente, que pegava no colo, cujas fraldas limpava? Não explicava. Seu filho Domingos Chapelin arrasta uma cadeira para perto do seu papá, e lhe conta a rede de causas e efeitos que trouxe os quatro desconfortos ao mundo, e pacientemente faz com que o próprio velho deduza, disso, a existência no Universo de toda uma categoria de objetos verbais (“piadas”) das quais antes não tinha consciência.

O velho tenta compreender. Pede exemplos de piadas. Domingos e a empregada lhe contam piadas de rabinos, de portugueses, de nordestinos, de negões, e de filhas ninfomaníacas de fazendeiros severos: debalde, debalde!, o velho não consegue nem ouvir nada. Domingos lhe compra um livro de anedotas de sogras: para Matias o livro está em branco, com uma ou outra letra impressa em lugares arbitrários.

-Você conheceu essa… piada quando estava na Austrália? – pergunta o sr Matias, tentando entender.

-Sim, me contaram a piada – diz o filho. – Os australianos têm muitas piadas sobre cangurus, mas essa era diferente. Era uma piada sobre um canguru com micropênis. Eu achei muito engraçada. Achei muito bonita também. A gente não conseguia tirar os olhos um do outro.

Marido e mulher se sorriem na cozinha dos Chapelin.

Matias pergunta: “Mas então onde está a minha nora? A minha nora piada de canguru?” Diz o filho que está sentada nesta cadeira. Matias olha para a cadeira que lhe parece vazia. Sendo fundamentalmente decente, começa a conversar com a nora. Olá, nora. Você está bem? Quer um copo d’água? Um vinhozinho? O filho serve de intérprete. Nora e sogro conversam, se sorriem. Os dois se levantam e tentam se abraçar. Já tentou abraçar uma piada? É mais difícil que beijar um aforismo. Fracassam. Mesmo assim, os dois choram de emoção. É um dia feliz na família Chapelin, e o primeiro de muitos dias felizes de família unida (foram 202 ao todo).

Foram 202 ao todo, nos quais o sr Matias tentava contar piadas para a sua nora sem saber muito bem o que eram piadas. “E aquela do cientista turco? Ele era turco. Mas os pais eram italianos.” Ainda outra: “Um matemático entra num bar. Ele usa um casaquinho.” Isso obviamente não obtinha sucesso além de sorrisos pálidos, e o melhor dos 202 dias que aquela família passou junta foram conversas banais, porém ternas, que não reporto aqui para não entediá-los.

Conta a história que no 202o dia bem de manhazinha o sr Matias arranjou uma escada com os vizinhos e subiu no parapeito do primeiro andar dum prédio da avenida Alfajores, onde se via pichada nos ladrilhos azuis pálidos a afirmação espantosa de que A MAIOR IRONIA DO FUTEBOL É O BLUMENAU ESPORTE CLUBE. Aquilo havia lhe incomodado durante dias. Finalmente subiu e começou a pintar um chapéu borsalino com tinta marrom bem em cima do “o” de “ironia”. E ia já pintando a fita do borsalino com muito capricho quando a morte segurou suas orelhas de abano e gentilmente o fez olhar para ela e então sorriu para o velho paterfamilias.

A escada caiu. Caiu o balde de tinta, caiu o pincel, caiu o seu corpo de velho com óculos e tudo. Mas sua alma subiu, subiu, subiu para a grande piada lá em cima, onde foi recebido com um abraço pela última e grande irônia que nos espera a todos.