A Paixão Obscura e Completamente Superduper de Jebediah Mendes

por soaressilva

Imagine um impossivelmente grande quintal onde oito irmãos brincam, cada um entretido com a sua paixão terna e monomaníaca: um estuda besouros, outro passarinhos, outro formigas, outro borboletas, outro minhocas, outro lagartixas, outro aranhas, e outro abelhas. Resta ao nono filho dos Mendes, Jebediah, Jebediah Mendes, ficar sentado desconsolado na quina do murinho que vai dar na estufa, tirando casquinha de ferida dos seus joelhos sefarditas. Sua paixão científica nunca tinha sido despertada por coisa nenhuma, e passava seus dias fazendo nothing much – até que um pobretão barrigudo, chamado Ediclei, passou pelos irmãos acocorados para ir consertar o teto da estufa.

Mal o cheiro do cigarro de Ediclei tinha sumido do ar e Jebediah já estava escrevendo num caderninho, “Ediclei fuma. Ediclei é vidraceiro. Ediclei está ouvindo música ruim num radinho.” Escondido num arbusto Jebediah escreveu quatro páginas inteiras de observações sobre o comportamento bizarro do seu primeiro pobre. Tinha oito anos. Era 8 de abril de 1978.

Seus pais – dois engenheiros-enxadristas que haviam revolucionado o campo da nanotecnologia ao construírem pequenos vibradores para joaninhas – apoiaram o interesse do filho mais novo, mesmo depois do susto de encontrá-lo na cozinha examinando o motorista da família, o Seu Jair, com o auxílio de um poderoso microscópio ZEISS TRINOCULAR AXIOPLAN 2. No aniversário de onze anos de Jebediah chegaram a lhe dar um menino pobrinho enrolado num laço vermelho; o menino, que se chamava Ayrton, foi estudado de perto durante dois anos e depois largado num canto junto com alguns frisbees rachados e fantoches da Vila Sésamo (onde se acredita que ainda esteja, comendo pipoca doce e ouvindo pagode.)

“Por que pobre ouve música ruim?”, perguntou Jebediah, aos vinte anos, para a sua primeira platéia de antropólogos estudiosos de pobre. “A princípio somos tentados a dizer que é porque eles não têm dinheiro, até que nos lembramos que é tão dispendioso ouvir Bach quanto Tchakabum.” (Imaginai aqui, leitor amigo, leitora de seios marmóreos, um homem na platéia, de rosto enrugadinho e erudito, óculos de leitura na ponta do nariz de acadêmico ashkenazi, mordiscando a ponta da língua enquanto anota no seu caderninho, em ídiche: “Tcha-ka-bum”.) Foi muito aplaudido, embora sua pergunta – conhecida na pauperologia como A Pergunta Mendes – não tenha sido respondida satisfatoriamente até hoje.

Leonard Klugmann, a maior figura na história da pauperologia, não resistiu a se tornar ele mesmo pobre, gastando de propósito toda a sua fortuna em jujuba e sorvete de flocos. “Poderia Fabre”, Klugmann se pergunta com a boca cheia de sorvete no documentário Reflexions of a Pauper, “resistir à possibilidade de se transformar numa formiga? Poderia Camille Flamarion resistir à possibilidade de se transformar numa galáxia? Poderia Margaret Mead resistir à possibilidade de se transformar numa samoana ninfomaníaca, ou Dian Fossey num orangotango? Pois muito menos pude eu, Leonard Klugmann, resistir à possibilidade de ficar pobre e ir viver na periferia de São Paulo, cercado dos objetos do meu estudo”.

Jebediah tinha uma fotografia de Klugmann no seu quarto, um homem de aparência aristocrática e tristonha, fotografado usando chapéu de explorador, chicote e bermuda na laje de uma favela; mas nunca teve a coragem de abrir mão da fortuna dos Mendes, pacientemente construída sobre a lubricidade de milhões de joaninhas.

O que fez, no entanto, foi extrair coragem do olhar magnético de Leonard Klugmann – que da parede, em cima da tevê de tela plana, parecia lhe dizer “Pesquisai! Pesquisai, meu bom menino!”. Começou a fazer pesquisas de campo, indo para várias favelas munido de binóculos e caderninho de anotações, e vestido – por camuflagem – com uma roupa que de costas parecia um telhado de zinco, e de frente parecia um pedaço de madeira meio podre com restos de um poster da Brahma. Instalava-se numa laje qualquer e ficava horas observando os pobres soltando rojão.

“24 de Dezembro de 1994, 20:32.”, anotou Jebediah. “Quatro pobres (entre os quais um homem evidentemente bêbado usando uma rede no cabelo) estão soltando rojões desde as 18:25 de ontem. Acho curioso como pobre solta rojão no Natal. Terá Klugmann escrito algo a respeito? (…) O homem com rede no cabelo só tem dois dedos na mão esquerda porque perdeu os outros num acidente no ano passado. Na minha experiência, pobre vive perdendo dedo soltando rojão. Idéia para estudo: contar quantos dedos uma população de 100 pobres têm.” Depois: “31 de Dezembro de 1998, 23:10. Estou observando um grupo de aproximadamente quinze pobres parados em pé na frente do Bar do Zé Sucrilho. Como começaram a soltar rojões na noite do dia 28, já não têm mais rojões pra soltar. Pobre vive fazendo isso (é uma raça notável pela falta de autocontrole). Estão chorando, chateados porque os fogos acabaram. Um pobre está gritando: “Caraaalho! Caraaalho!”. Nos bairros mais abastados os fogos de Ano Novo começaram a estourar faz pouco, aumentando a frustração do grupo sob observação. Um deles se acocorou no meio da rua e está repetindo “Puta merda, puta merda”, cobrindo a cabeça com as mãos sem dedos. Vou passar pra casa do lado pra observar melhor a lamentação dos pobres.”

Mas o estudo que finalmente estabeleceu sua reputação, aos 32 anos, se chamava “Os Pobres e Sua Paixão Por Lajes – Uma Observação de Campo”. Nele Jebediah dizia que a paixão por trabalhar com lajes era o que caracterizava os pobres de todas as épocas; “eles adoram laje, é impressionante”. Continuo citando Jebediah: “Não se pode dizer que alguém é pobre baseado exclusivamente na sua renda – onde estaria a fronteira entre o pobre e o não pobre? O que caracteriza o pobre de todas as épocas é sua paixão por lajes de todos os tipos, que precisam eternamente ser ampliadas ou simplesmente reformadas.” O estudo prosseguia contando o caso de Waldimar dos Santos Pereira, um pobre de Belo Horizonte que, tendo ficado rico na loteria, havia se mudado para uma casa no Morumbi, em São Paulo, provocando a revolta de seus vizinhos ao construir uma laje gigantesca de pórfiro e ônix, com uma caixa d´água aparente e montinhos de cimento espalhados aqui e ali, em cima da qual o Sr. Waldimar e seus amigos, sem camisa e falando muito alto, comiam churrasco e ouviam pagode. “Pobre que é pobre”, concluía o estudo, “está sempre fazendo um puxadinho; e é característico dos pobres que a reforma da laje nunca acabe, provendo a laje de acessórios que dão status, como carrinhos de cimento e pás.”

“Bravo”, escreveu Zuchmann. “Excelente”, escreveu Zarkoff. Na noite em que leu o estudo sobre puxadinhos para duzentos pauperólogos reunidos em Budapeste, Jebediah foi aplaudido de pé, e em húngaro, durante longos onze minutos; e enquanto voltava para o quarto no hotel, dançava no corredor de tanta felicidade, fazendo gestos desnecessariamente efeminados e em câmera lenta. Disso, desse momento de grande alegria, foram testemunhas as portas do hotel húngaro, os insetos que giravam em torno das lâmpadas (dispostas a cada cinco metros no teto, com uma delas, a terceira a partir do elevador, piscando efusivamente como se congratulasse Jebediah), e as lentas e laboriosas estrelas. Também testemunharam a depressão que se seguiu, porque dias e dias se passaram e nenhuma palavra de Klugmann, seu herói.

“Klugmann disse algo?”, ele escreveu para Zarkoff. “Sabe se Klugmann leu o artigo?”, escreveu para Filipoff. Ninguém sabia nada; e tão grande foi a depressão de Jebediah que passou alguns dias trancado no seu quarto em São Paulo, vendo sitcoms em posição fetal e ocasionalmente comendo goiabinha. Isso durou quatro meses; até que uma tarde, estando numa laje observando pobres no seu binóculo (havia um grupo sentado em latinhas de soja, imbecilmente olhando uma rachadura na calçada durante horas), viu contra o sol poente um homem que vinha – (mas deixa eu mudar de parágrafo)

Jebediah viu contra o sol poente um homem que vinha pulando de laje em laje. Era alto, magro, usava capacete de explorador do Congo Belga e era muito vermelhão.

Era Klugmann! Klugmann pulou para a laje em que Jebediah estava, e acenou com a cabeça; e fazendo um gesto de silêncio, sentou ao lado de Jebediah e começou a olhar os pobres junto com ele, usando seu próprio par de binóculos.

Longo tempo ficaram assim na tarde de agosto, com o coração de Jebediah pulando no peito como se fosse uma rã presa numa caixinha de chá – poc poc, poc poc. Jebediah olhava para seu herói disfarçadamente (tinha tantas marcas de bala, de tantas vezes que tinha sido assaltado, e marcas de faca também), e Jebediah pensava se devia perguntar alguma coisa, ou pelo menos se apresentar, quando finalmente o grande herói se levantou da laje.

Tirando areia dos joelhos, Klugmann casualmente disse:

– And by the way, great job on the puxadinho thing. I´m Klugmann. See you around.

E nunca, nunca, a vida foi tão bonita, ou de novo tão gloriosa.