Chego a Sentir Saudade dos Jegues
por soaressilva
Vou dizer uma coisa que me irrita na literatura brasileira contemporânea. Não querem ser realistas, o que admito que não é por si um desejo mórbido depois de tantos jegues, de tantos matadores de aluguel, e de tantas Fátimas que queriam mostrar o pé na choperia lá por volta de dez anos atrás. Mas a maneira que encontram de evitar o realismo é a vaguidão.
A cidade não é nomeada, é uma cidade que se pretende mítica com avenidas sem nome, praças sem nome, um rio sem nome. É como uma dessas abstrações de cidade que aparecem em algumas HQs, adaptações ruins de Kafka por exemplo: prédios uniformes, uma vaga idéia de asfalto e pombos.
Nenhuma noção de bairro, de bairros diferentes com personalidades diferentes; da atmosfera peculiar a uma rua com nome e história, em uma manhã específica; enfim, daquilo que aquele magnífico salta-pocinhas chamava de “a alma encantadora das ruas”. Não, é como uma direção de peça: LOCAL: UMA GRANDE CIDADE BRASILEIRA, e basta.
Os personagens são Ele e Ela; às vezes o Avô, a Criança ou o Contador, em frases como “o Contador acorda, e pela janela vê que a Criança ainda não saiu de junto ao poste do outro lado da Avenida”. Se têm nome, não têm sobrenome. Sim, se têm nome, há de ser alguma coisa genérica simbolizando todos os homens e todas as mulheres de uma geração, tipo Edu ou Márcia.
Esses Edus evidentemente têm rostos, mas você que os imagine. Você que imagine tudo, os rostos e as casas, as viagens de ônibus intermunicipal, o jeito do Contador andar; mas por favor não imagine com muito detalhismo, não dê uma assimetria aos olhos do Edu que o torne vívido demais ou ele vai ficar menos simbólico de todos os jovens anedônicos na Cidade Moderna.
(entra o coro com orguinho
~JOVENS ANEDÔNICOS ~
~JOVENS ANEDÔNICOS ~
~NESTA CIDADE IMUNDA~, etc)
O tempo é vago, em que época se passa?, ora se passa sempre num Agora. O que queria, o trimestre? E narramos no tempo presente – ele não acordou, ele acorda – às vezes com Itálicos de Angústia, para marcarmos a diferença entre o presente vago e o passado vago. Porque no passado houve um evento traumático na vida do Contador, que demoramos para perceber exatamente o que foi, mas lá pelo fim imagino que percebemos com clareza (imagino porque não chego ao fim). O livro inteiro pulamos do presente ao passado, sempre através não dos olhos, que ele não os têm, mas da mente do Contador, de Edu, de Ele. De fato, ele tem uma mente e, senhores, se preparem porque ela vai REMOER (a literatura contemporânea não vê, não ouve, ela remói).
Essa mente sem olhos se debate na Cidade Moderna, como numa gigantesca noite de insônia; ela soltou o lençol com as suas pernas inquietas e está molhada de suor na noite da sua insônia muito artística. Sofre no presente e sofre no passado (o tom característico da literatura contemporânea é uma angustiazinha de merda). Essa mente narradora pensa que não sofre, porque o personagem se crê um pouco morto por dentro e sem emoções, mas porém falando sempre das suas emoções; uma espécie de estóico choramingas. E tudo é emoção, nada é concreto e visível: não há esquinas que se vejam bem, nem pátios nem vitrais, só declarações diretas de ressentimentos, raivas, ternuras.
Olha, isto é nem só o mal da literatura brasileira contemporânea, se é um mal, mas advogo que seja; advogo que seja, porque quero ver coisas como o minúsculo e trêmulo poodle com “glistening eyes like sad black olives” em “Ada”. Me deixe ver alguma coisa, sim, no meio desta neblina? Chego a sentir saudades dos jegues da literatura brasileira – pelo menos jegues eram uma coisa que você via nitidamente. Mas como dizia, não só da literatura brasileira: leia qualquer coisa de Lobo Antunes, como fala dos seus sentimentos este homem, quase como uma divorciada tomando uísque.
Disse faz pouco que a literatura contemporânea não vê, não ouve, ela remói? Pois sim, é uma ex-namorada reclamando noite adentro (não sem a sua dose de razão). É como imagino o Inferno: sentimentos remoídos, eternamente, nas trevas.
Ou, o romance contemporâneo como quebra-cabeças cujas peças são mágoas que você tem que colocar em ordem: este sentimento ferido vem aqui, pouco antes deste outro sentimento ferido.
Ou lê aqui o início de “O Cemitério de Raparigas”, do MEC, de quem gosto muito na não-ficção, olhe como não se vê nada: “Por acaso a mulher que matou as minhas namoradas é casada comigo – senão eu não contava. Nada. Nem estava aqui. Não teria maneira de saber. Nenhuma. Como é que poderia contar fosse o que fosse? Livra! Haverá pensamento mais triste?”
E por aí vai, me parecem todos assim ultimamente. Mas que sei eu, nem leio tantos livros contemporâneos assim, imagino que há exceções. Ó homem das exceções, sei que há exceções. Sempre vem alguém me aborrecer com exceções.
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[…] que a daquela do Império, com a versão nacional do “ecletismo” de Victor Cousin, e pior: com saudade dos jegues. Retornemos, portanto, à província. É o que nos aconselha Tolstoi: “Canta a tua aldeia e […]
[…] frouxa que a daquela do Império, com a versão nacional do ecletismo de Victor Cousin, e pior: com saudade dos jegues. Retornemos, portanto, à província. É o que nos aconselha Tolstoi: Canta a tua aldeia e serás […]