Dr Palhinha de Taubaté, o Maior Detetive que o Mundo Já Conheceu

por soaressilva

Honório Palha de Godoy, 68, o Dr Palhinha de Taubaté, é sem dúvida o maior detetive que o mundo já conheceu. Mas seus métodos são polêmicos e, dizem os detetives estrangeiros, “pré-científicos”; ao que o Dr Palhinha nada responde senão cuspir tabaco no chão da pracinha.

É um homem bronco, fortão, facilmente avermelhável, que passa o dia no banco da praça Calixto Bolinha com seus amigos taxistas e a tia do bócio, a arejar as unhas encravadas sob a sombra dum imenso jequitibá branco. Até aquele canto sombreado de praça vêm potentados do mundo inteiro procurar os conselhos do Dr Palhinha: o sr Jimmy Carter (recebido pela tia do bócio nos termos “ô seu Jimmy, senta aí”), o físico aquele da cadeira, todo torto coitado, tenistas russas, marajás com turbantes altíssimos que esbarram nos galhos das duas figueiras da praça, chefes de tribos do Pacífico, banqueiros suíços, guerrilheiros latinos, sheiks a brilhar de ouro.

Pela praça todos eles avançam um tanto hesitantes, porque sabem que o Dr Palhinha pode fazer um comentário sobre suas raças esquisitas. Mas sentam no banco ao lado do detetive e o Dr Palhinha os ouve até o fim, em meio ao silêncio respeitoso dos seus amigos taxistas. A história se desenrola com a ajuda de um intérprete; a tia do bócio batuca pensativamente no seu bócio; e o Dr Palhinha, nunca visto sem sandália por causa da condição lamentável das suas unhas, tira bicho-do-pé com um canivete. Quando a história termina, o Dr Palhinha guarda o canivete no bolso da camisa safari, olha para o paxá, ou astro de Hollywood ou o que o valha, e invariavelmente diz:

-O mister quer sorvete de milho? Óia que é dos bons viu. Agenor vai comprar um sorvete de milho pro moço.

Agenor o taxista vai. Às vezes é o filho dele que vai na sorveteria ali da frente. O paxá, czar das drogas ou dervixe – de conforme com quem seja – espera em silêncio porque sabe de ter sido informado que esse ritual tem que ser cumprido, ou o Dr Palhinha fecha a cara. Agenor volta com duas casquinhas. É muito lento o Agenor, demorou demais. Paxá e Dr Palhinha se esbaldam. O Dr Palhinha gosta especialmente de ver um tirano indonésio de óculos escuros, um tipo assim sinistro, lambuzar a barba toda de sorvete de milho. Fica paternal, oferece guardanapo.

-Viu, o caso aí que o senhor falou, vou ter que ir lá dar uma olhada – o Dr Palhinha acaba dizendo.

E lá vai o Dr Palhinha junto com o paxá gordote num jatinho para algum palácio oriental, o Dr Palhinha sempre nervoso porque vai perder a novela, tentando sintonizar a telinha do jatinho, batendo com a unha comprida e rachada na tela de plasma.

-Onde sintoniza esse troço?

-I don’t believe it’s possible to do it…

-Não consigo sintonizar esse troço.

Quanto ao famoso método dedutivo do Dr Palhinha, e sua sabedoria ancestral, pré-iluminista, mas estranhamente eficiente, basta que conte dois episódios curtos.

1 – O MASSACRE DE CONVINGTON

Na cidade de Convington, Maschassusets (letras trocadas para proteger a identidade do estado), uma jovem enxadrista russa a Srta Ludmila Pogonina foi encontrada morta no seu quarto durante a festa de Natal de 2006. Ela havia sido apunhalada no coração com um bispo branco de madeira, que estava sumido da caixa onde as peças eram guardadas.

A porta estava trancada por dentro, mas a janela do quarto estava aberta e havia marcas de pés e de dedos em toda a beirada da janela. O assassino havia pulado no roseiral lá embaixo, deixando rastros que voltavam para a casa, o que indicava que o assassino era um dos muitos hóspedes. A polícia americana discutiu muito sobre o motivo do crime, porque entre os hóspedes estavam dois herdeiros da enxadrista riquíssima, uma enxadrista rival, e um cara que não gostava de xadrez (achava meio chato).

O caso se arrastou por uma semana. Nem a polícia americana chegava a uma conclusão, nem os hóspedes podiam ir embora da casa.

Nisso, chamaram o Dr Palhinha.

O Dr Palhinha nem quis ler o testamento complexo da enxadrista no avião. Só tirou um cochilo, ficou na dele.

O xerife Sam Triscoe escoltou o Dr Palhinha até o centro do quarto, onde um contorno de giz ainda marcava as curvas voluptuosas da enxadrista morta. O Dr Palhinha ficou de cócoras no chão examinando o carpete, enquanto Sam “Thunderbolt” Triscoe esperava em silêncio respeitoso.

O Dr Palhinha deu uma risadinha mas não disse nada. Daí o detetive foi para a janela, examinou a beirada, e riu de novo.

-Ó isso aqui – o Dr Palhinha disse, apontando para as marcas de pés e dedos na janela. E a seguir disse: – Isso aqui é serviço de preto.

Com alguma hesitação, o intérprete traduziu as palavras do Dr Palhinha. Em meio ao silêncio chocado dos suspeitos que aguardavam em volta, o xerife ia expressar a sua consternação com o racismo gratuito do investigador brasileiro quando um dos suspeitos, o sr. Thomas Sowell, um senhor negro muito respeitado que aliás é o maior economista vivo, ficou pálido e, com as ventas se alargando de pânico, deu um grito e se atirou pela janela, caindo no roseiral.

-Get him, boys! – gritou Sam Triscoe, dando início a uma perseguição que durou dois dias, até que Thomas Sowell, faminto e com as roupas todas rasgadas, fosse apanhado num pântano a seis quilômetros dali, e se verificasse que de fato estava com um bispo branco manchado de sangue no bolso.

Mas quem diz que os estrangeiros aceitam nossas técnicas tradicionais de investigação? Mal o xerife havia saído correndo em perseguição ao economista de 81 anos, a srta Lucille Boyard, que mais tarde viraria presidente do movimento FREE THOMAS SOWELL, disse o que todos estavam pensando:

-Mas isso não quer dizer nada… O senhor acertou por pura sorte.

Ao que o célebre taubateense, que não gosta de “dar trela pra mulher respondona”, só respondeu:

-Então tá bão.

2 – O CASO DO NARIZ DE S.PETERSBURGO

Diz o Dr Palhinha de Taubaté, sentado na praça Calixto Bolinha no intervalo do jogo no radinho de pilha:

-Meu método ah o meu método é o seguinte. Não tem segredo não. Cê vê o culpado de acordo com a raça do bicho. Cada raça mata de um jeito diferente. Francês pega na faca de um jeito assim meio de viado. Já viu facada de viado? Eles num perfura não, eles corta. Espanhol não, espanhol é furioso, a ferida vai fundo. Já italiano cê reconhece porque ele salpica o cadáver de lágrima.

Perde a humanidade ao abandonar essa sabedoria de todos os tempos.

Mas mais um caso. O célebre Caso do Nariz de S.Petersburgo.

Numa enorme escola de balé em S.Petersburgo, o velho coreógrafo St Didier foi encontrado morto, atravessado no peito pela baioneta usada para os ensaios do Quebra Nozes. A primeira coisa que o Dr Palhinha disse foi:

-Achei que ia ser coisa de viado, mas óia, foi fundo.

-O senhor acha então que o criminoso não é um homossexual? – perguntou um jornalista.

-Óia, se for é das brabas.

Depois de entrevistar as alunas da escola (“Mas dançam essas danadas, viu”), os professores e secretárias, o Dr Palhinha reuniu todos os suspeitos e a imprensa internacional no salão principal, e sentou no banquinho do piano para descansar os pés.

-Esse espelho todo nossa deve ter custado uma dinheirama – ele comentou. – Quanto custou?

-Uma bagatelle… – disse em francês pernóstico a Mme Provaskaya, a gordota mestra de balé e administradora da escola.

-Então, no início eu pensei aqui comigo, balé é coisa de viado. Mas daí eu vi que os dois homens que podiam ter matado o seu Didier não tem cara de viado. Nossa se o Andrey for viado então tá tudo perdido, olha a altura do ómi.

Andrey era, de fato, muito alto para ser um homossexual.

O Dr Palhinha acenou para que uma criada se aproximasse. Ela deixou em cima do piano um pratinho coberto por um pano, e foi embora. O Dr Palhinha ignorou o prato e disse:

-Mas daí que eu vi, tem um dinheirama disgramado em jogo aqui. Essa escola tem mais espelho que quarto de jogador de futebol. A motivação do crime foi claramente dinheiro. E isso é coisa de judeu viu. – Lentamente o Dr Palhinha correu os olhos pelos presentes. – Porque judeu é assim ó.

Todos olharam para a sua mão fechada e cheia de manchas senis.

-Daí eu perguntei pro seu Dmitri da polícia quem que na escola que era judeu, e ele disse que não tinha judeu aqui. E eu pensei aqui com os meus botões, mas tá bom que não tem judeu. Só o nariz da Mme Provaskaya dá dois do meu.

Imediatamente Mme Provaskaya deu um grito e cobriu o nariz com as mãos (ou tentou cobrir, porque uma parte ficava sempre para fora).

-Absurdo! Não há uma gota de sangue judeu na minha família!

O Dr Palhinha palitou os dentes devagar, tirou o palito, sorriu sabido.

-Ah é então, então come isso aqui – e, tirando dramaticamente o pano de cima do prato pousado no piano, revelou aos olhos de todos um imenso e fumegante chouriço.

-O que é isso? – Mme Provaskaya perguntou, para ganhar tempo.

-Chouriço com jilozinho. Trouxe lá da Chácara do Visconde.

Ele levantou e ofereceu o petisco para a velha bailarina.

-Tá bão. Cê num quer, como eu.  – Ele comeu um pouco. – Nhami nhami chouricinho.

Nisso Dmitri Bolkonsky, chefe de polícia, não aguentou mais e interrompeu a cena atroz:

-Não posso permitir um ato de flagrante anti-semitismo…

Mas, infelizmente para todas as consciências esclarecidas, nesse mesmo momento Mme Provaskaya, se levantando e dando um guincho, explodiu numa nuvem de enxofre – e antes que a nuvem tomasse conta do salão e a assassina desaparecesse para sempre, todos viram que no lugar de pés a velha tinha cascos de cabra.

O Dr Palhinha se persignou algumas vezes, assustado. E depois, dando de ombros, terminou de comer o chouriço.